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Psiquiatria na prática médica  

Órgão Oficial do

Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM

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Reumatologia

Alterações psiquiátricas leves são referidas por quase metade dos pacientes que utilizam glicocorticóides (GC) em altas doses, porém surtos psicóticos são raros. Embora a dose de GC esteja relacionada a um maior risco de desenvolver manifestações psiquiátricas, o antecedente psiquiátrico ou de psicose por GC e personalidade pré-mórbida não estão associados a maior risco desse efeito colateral. O tratamento da psicose por GC inclui a diminuição da dose do mesmo ou, se possível, sua retirada e o uso de drogas antipsicóticas. Nos pacientes com lúpus eritematoso sitêmico (LES) em uso de GC e que desenvolvem psicose, muitas vezes se torna impossível diferenciar entre atividade de doença e efeito colateral de GC. Nessas situações, sugere-se aumentar a dose de GC e observar. Como na maioria dos casos se deve à atividade da doença, há melhora dos sintomas psiquiátricos.


Manifestações psiquiátricas da corticoterapia
Emilia I Sato

   


Emília I. Sato

 

Emilia Inoue Sato
Professora da Disciplina de Reumatologia do Departamento de Medicina da Unifesp/EPM

 

Correspondência
Emilia Inoue Sato
Disciplina de Reumatologia
Unifesp/EPM
Rua Botucatu, 740
CEP 04023-900  São Paulo, SP
E-mail:
emiliasato@reumato.epm.br

 

Os glicocorticóides (GC) têm sido utilizados no tratamento de variada gama de doenças devido a seu efeito antiinflamatório e imunossupressor. O mecanismo de ação dos GC é complexo. Após atravessarem a membrana celular, ligam-se a receptores citoplasmáticos específicos, deslocando a proteína de choque térmico (que habitualmente se encontra ligada a esses receptores) e levando a uma modificação alostérica no receptor de GC. O complexo receptor-GC é translocado para o núcleo da célula, onde se liga ao gene responsivo ao GC, induzindo à maior expressão do gene alvo e à transcrição e translação do seu mRNA.1,2

Como a maior parte dos GC se encontra ligada à proteína específica carregadora de corticoesteróide (transcortina) ou à albumina, pacientes com hipoalbuminemia acentuada podem ter mais droga livre e, portanto, apresentar mais efeitos colaterais. A metabolização de GC é acelerada por drogas como a fenitoina, os barbitúricos e a rifampicina, que induzem ao aumento da atividade de enzima microssomal hepática. Na utilização concomitante de GC e alguma dessas substâncias pode ser necessário aumentar a dose do primeiro.2

Os efeitos colaterais da terapia com esteróides incluem as seguintes alterações: a) metabólicas (obesidade centrípeta, intolerância à glicose, coma hiperosmolar não-cetótico); b) endócrinas (supressão do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal, distúrbio do crescimento na criança e irregularidades menstruais); c) musculo-esqueléticas (osteoporose, necrose óssea asséptica, miopatia); d) cutâneas (afinamento e fragilidade cutânea, estrias, acne, hirsutismo, púrpura, distúrbio na cicatrização); e) oculares (catarata subcapsular posterior, glaucoma); f) cardiovasculares e renais (retenção de água e sódio, alcalose hipocalêmica, hipertensão arterial); g) neuropsiquiátricas (desordens psiquiátricas, pseudotumor cerebral); e h) gastrintestinais (pancreatite, úlcera péptica, perfuração intestinal) e imunológicas (infecções).2,3

Manifestações psiquiátricas da corticoterapia

As manifestações psiquiátricas decorrentes do uso de GC são conhecidas, porém muitas vezes é difícil avaliar se constituem efeito colateral da terapia ou são efeito da própria doença de base.

As alterações mentais induzidas por GC mais freqüentes são a labilidade emocional, a ansiedade, a distração, a insônia, a depressão, a perplexidade, a agitação, a alucinação visual e auditiva, a alteração intermitente de memória, o distúrbio da imagem corporal, a apatia e a hipomania. Na literatura, a freqüência desses efeitos varia de 13% a 62%, com média em torno de 27%. Como regra geral, manifestações menos importantes como insônia, depressão, hipomania ou euforia, confusão e problemas de memórias são queixas freqüentes em pacientes em uso de GC. Entretanto, manifestações mais graves, como a psicose, são raras. A média da incidência de psicose induzida por GC em várias doenças é estimada em torno de 5,7%, mas parece ser bem maior em pacientes com LES e pênfigo.4

Em estudo de curta duração com placebo controlado, Chrousos et al5 avaliaram o uso de altas doses de GC ou placebo em 457 pacientes com neurite ótica. Insônia, distúrbios do sono, alterações leves do humor ocorreram de 34% a 53% dos pacientes que utilizaram GC em dose de 1 mg/kg/dia ou em forma de pulsoterapia por 3 dias e de 16% a 20% no grupo placebo. Apenas um paciente do grupo GC desenvolveu psicose.

Embora a psicose seja descrita de 5% a 28% de pacientes com LES, Rogers6 estimou que apenas 5% das psicoses são causadas pelo uso de GC. A distinção entre psicose lúpica e psicose induzida por GC é difícil de se fazer. A presença concomitante de outras manifestações neurológicas e/ou a positividade de anticorpos anti-P ribossomal são elementos que podem sugerir que a psicose deva-se à atividade do lúpus, mas outras causas de alterações psiquiátricas como uremia, distúrbio eletrolítico, uso de outras drogas e infecções do sistema nervoso devem ser descartadas.4

A relação entre o risco de desenvolver psicose e a dose de GC está bem documentada na literatura. No estudo colaborativo de vigilância de droga de Boston7 observou-se 1,3% dos pacientes que receberam 40 mg/dia, 4,8% dos que receberam de 41 a 80 mg/dia e 18,4% com doses maiores que 80 mg/dia de prednisona apresentaram psicose por esteróides. A dose média de prednisona ou equivalente, nos pacientes com psicose, foi de 59,5 mg/dia, enquanto 31,1 mg/dia foi a média da dose de GC em pacientes que não tiveram psicose. Antecedente psiquiátrico, personalidade pré-mórbida ou antecedente de psicose por GC não estão claramente associados a maior risco de desenvolver psicose por GC. Entretanto, o desenvolvimento de labilidade emocional, disforia, hiperacusia e irritabilidade freqüentemente antecedem entre 72 h e 96 h o desenvolvimento de distúrbios psiquiátricos mais sérios.4,8,9

Com relação ao tratamento da psicose induzida por GC, antes da utilização de fenotizinas foi observado que a psicose por esteróide remitia espontaneamente após 2 semanas a 7 meses da suspensão de GC. Após 6 semanas, 80% dos casos remitiram espontaneamente. Entretanto, a administração de fenotiazinas reduziu dramaticamente esse período. Vários esquemas terapêuticos para a psicose por GC são amplamente utilizados. Os mais eficazes incluem a descontinuação de GC quando possível ou a redução à mínima dose (podendo se associar outras drogas, como os imunossupressores, para o tratamento da atividade lúpica) e o uso de fenotiazinas ou outras drogas antipsicóticas. A utilização de antidepressivos tricíclicos deve ser evitada, pois a literatura mostra uma pobre resposta e, até mesmo, uma piora dos sintomas. As drogas mais freqüentemente usadas para o tratamento da psicose por GC são a tioridazina (50 mg/dia a 200 mg/dia), clorpromazina (50 mg/dia a 200 mg/dia) e o haloperidol (2 mg/dia a 10 mg/dia). A excitação e a hiperestimulação devem ser evitadas, e a ansiedade pode ser controlada com uso de drogas ansiolíticas em pacientes em uso de GC em altas doses.4

Nos casos em que se torna impossível distinguir a psicose lúpica da por GC, sugere-se que se dobre a dose de GC por três dias e que ocorra observação. Se a psicose persistir ou piorar, é sinal de que pode estar sendo induzida por GC. Nesse caso, recomenda-se reduzir a dose de GC para metade da dose original e observar a evolução. Outra opção é que se interne o paciente e se diminua drasticamente a dose de GC. Se a psicose for induzida por GC, espera-se melhora dramática entre 48h e 72h.4 A escolha entre as duas opções dependerá de cada caso, mas como a psicose por GC é rara, habitualmente segue-se a primeira opção.

Para se tentar obter a melhor relação risco/benefício, a orientação geral para a corticoterapia é que se utilize a menor dose eficaz pelo menor tempo. Nos casos de uso crônico, a utilização de GC em dias alternados deve ser sempre tentada. Deve-se dar preferência ao uso de preparado de corticoesteróide de ação mais curta, que causa menor depressão do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal, e pode ser suspensa caso se observem efeitos colaterais. A potência antiinflamatória dos diversos preparados de GC é bastante variável, devendo-se tomar cuidado para se fazer a substituição de um preparado por outro.

O diagnóstico das alterações psiquiátricas induzidas por GC continua sendo um problema médico, sobretudo em pacientes com doenças que também podem causar distúrbios semelhantes.

Referências

  1. Shapiro HS. Psychopathology in the patiente with lupus. In: Dubois’s lupus erythematosus. Walllace DJ, Hahn BH, editors. 5th ed. Baltimore: Williams & Wilkins; 1997. p. 755-83.
  2. Quismorio FPJr. Systemic corticosteroid therapy in systemic lupus erythematosus. In: Dubois’s lupus erythematosus. Walllace DJ, Hahn BH, editors. 5th edition. Baltimore: Williams & Wilkins; 1997. p. 1141-62.
  3. Boston collaborative drug surveillance program. Acute adverse reactions to prednisone in relation to dosage. Clin Pharmacol Ther 1972;13:694-8.
  4. Ling MHM, Perry PJ, Tsuang MT. Side effects of corticosteroid therapy. Arch Gen Psychiatry 1981;38:471-7.
  5. Kohen M, Asherson RA, Gharavi AE, Lahita RG. Lupus psychosis: differentiation from steroid-induced state. Clin Exp Rheumatol 1993;11:323-6.
  6. West SG. Neuropsychiatric lupus. Rheum Dis North Am 1994;20:129-58.
  7. Wolkowitz OM, Rubnov D, Doran Am, Breier A, Berrettini WH, Kling MA, et al.  Prednisona effects on neurochemistry and behavior preliminary finding. Arch Gen Psychiatry 1990;47:936-8.

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