Órgão Oficial do |
Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM |
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Manifestações psiquiátricas da corticoterapia
Emilia I Sato
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Emilia Inoue Sato |
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Correspondência |
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Os glicocorticóides (GC) têm sido utilizados no tratamento de variada gama de doenças devido a seu efeito antiinflamatório e imunossupressor. O mecanismo de ação dos GC é complexo. Após atravessarem a membrana celular, ligam-se a receptores citoplasmáticos específicos, deslocando a proteína de choque térmico (que habitualmente se encontra ligada a esses receptores) e levando a uma modificação alostérica no receptor de GC. O complexo receptor-GC é translocado para o núcleo da célula, onde se liga ao gene responsivo ao GC, induzindo à maior expressão do gene alvo e à transcrição e translação do seu mRNA.1,2
Como a maior parte dos GC se encontra ligada à proteína específica carregadora de corticoesteróide (transcortina) ou à albumina, pacientes com hipoalbuminemia acentuada podem ter mais droga livre e, portanto, apresentar mais efeitos colaterais. A metabolização de GC é acelerada por drogas como a fenitoina, os barbitúricos e a rifampicina, que induzem ao aumento da atividade de enzima microssomal hepática. Na utilização concomitante de GC e alguma dessas substâncias pode ser necessário aumentar a dose do primeiro.2
Os efeitos colaterais da terapia com esteróides incluem as seguintes alterações: a) metabólicas (obesidade centrípeta, intolerância à glicose, coma hiperosmolar não-cetótico); b) endócrinas (supressão do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal, distúrbio do crescimento na criança e irregularidades menstruais); c) musculo-esqueléticas (osteoporose, necrose óssea asséptica, miopatia); d) cutâneas (afinamento e fragilidade cutânea, estrias, acne, hirsutismo, púrpura, distúrbio na cicatrização); e) oculares (catarata subcapsular posterior, glaucoma); f) cardiovasculares e renais (retenção de água e sódio, alcalose hipocalêmica, hipertensão arterial); g) neuropsiquiátricas (desordens psiquiátricas, pseudotumor cerebral); e h) gastrintestinais (pancreatite, úlcera péptica, perfuração intestinal) e imunológicas (infecções).2,3
Manifestações psiquiátricas da corticoterapia
As manifestações psiquiátricas decorrentes do uso de GC são conhecidas, porém muitas vezes é difícil avaliar se constituem efeito colateral da terapia ou são efeito da própria doença de base.
As alterações mentais induzidas por GC mais freqüentes são a labilidade emocional, a ansiedade, a distração, a insônia, a depressão, a perplexidade, a agitação, a alucinação visual e auditiva, a alteração intermitente de memória, o distúrbio da imagem corporal, a apatia e a hipomania. Na literatura, a freqüência desses efeitos varia de 13% a 62%, com média em torno de 27%. Como regra geral, manifestações menos importantes como insônia, depressão, hipomania ou euforia, confusão e problemas de memórias são queixas freqüentes em pacientes em uso de GC. Entretanto, manifestações mais graves, como a psicose, são raras. A média da incidência de psicose induzida por GC em várias doenças é estimada em torno de 5,7%, mas parece ser bem maior em pacientes com LES e pênfigo.4
Em estudo de curta duração com placebo controlado, Chrousos et al5 avaliaram o uso de altas doses de GC ou placebo em 457 pacientes com neurite ótica. Insônia, distúrbios do sono, alterações leves do humor ocorreram de 34% a 53% dos pacientes que utilizaram GC em dose de 1 mg/kg/dia ou em forma de pulsoterapia por 3 dias e de 16% a 20% no grupo placebo. Apenas um paciente do grupo GC desenvolveu psicose.
Embora a psicose seja descrita de 5% a 28% de pacientes com LES, Rogers6 estimou que apenas 5% das psicoses são causadas pelo uso de GC. A distinção entre psicose lúpica e psicose induzida por GC é difícil de se fazer. A presença concomitante de outras manifestações neurológicas e/ou a positividade de anticorpos anti-P ribossomal são elementos que podem sugerir que a psicose deva-se à atividade do lúpus, mas outras causas de alterações psiquiátricas como uremia, distúrbio eletrolítico, uso de outras drogas e infecções do sistema nervoso devem ser descartadas.4
A relação entre o risco de desenvolver psicose e a dose de GC está bem documentada na literatura. No estudo colaborativo de vigilância de droga de Boston7 observou-se 1,3% dos pacientes que receberam 40 mg/dia, 4,8% dos que receberam de 41 a 80 mg/dia e 18,4% com doses maiores que 80 mg/dia de prednisona apresentaram psicose por esteróides. A dose média de prednisona ou equivalente, nos pacientes com psicose, foi de 59,5 mg/dia, enquanto 31,1 mg/dia foi a média da dose de GC em pacientes que não tiveram psicose. Antecedente psiquiátrico, personalidade pré-mórbida ou antecedente de psicose por GC não estão claramente associados a maior risco de desenvolver psicose por GC. Entretanto, o desenvolvimento de labilidade emocional, disforia, hiperacusia e irritabilidade freqüentemente antecedem entre 72 h e 96 h o desenvolvimento de distúrbios psiquiátricos mais sérios.4,8,9
Com relação ao tratamento da psicose induzida por GC, antes da utilização de fenotizinas foi observado que a psicose por esteróide remitia espontaneamente após 2 semanas a 7 meses da suspensão de GC. Após 6 semanas, 80% dos casos remitiram espontaneamente. Entretanto, a administração de fenotiazinas reduziu dramaticamente esse período. Vários esquemas terapêuticos para a psicose por GC são amplamente utilizados. Os mais eficazes incluem a descontinuação de GC quando possível ou a redução à mínima dose (podendo se associar outras drogas, como os imunossupressores, para o tratamento da atividade lúpica) e o uso de fenotiazinas ou outras drogas antipsicóticas. A utilização de antidepressivos tricíclicos deve ser evitada, pois a literatura mostra uma pobre resposta e, até mesmo, uma piora dos sintomas. As drogas mais freqüentemente usadas para o tratamento da psicose por GC são a tioridazina (50 mg/dia a 200 mg/dia), clorpromazina (50 mg/dia a 200 mg/dia) e o haloperidol (2 mg/dia a 10 mg/dia). A excitação e a hiperestimulação devem ser evitadas, e a ansiedade pode ser controlada com uso de drogas ansiolíticas em pacientes em uso de GC em altas doses.4
Nos casos em que se torna impossível distinguir a psicose lúpica da por GC, sugere-se que se dobre a dose de GC por três dias e que ocorra observação. Se a psicose persistir ou piorar, é sinal de que pode estar sendo induzida por GC. Nesse caso, recomenda-se reduzir a dose de GC para metade da dose original e observar a evolução. Outra opção é que se interne o paciente e se diminua drasticamente a dose de GC. Se a psicose for induzida por GC, espera-se melhora dramática entre 48h e 72h.4 A escolha entre as duas opções dependerá de cada caso, mas como a psicose por GC é rara, habitualmente segue-se a primeira opção.
Para se tentar obter a melhor relação risco/benefício, a orientação geral para a corticoterapia é que se utilize a menor dose eficaz pelo menor tempo. Nos casos de uso crônico, a utilização de GC em dias alternados deve ser sempre tentada. Deve-se dar preferência ao uso de preparado de corticoesteróide de ação mais curta, que causa menor depressão do eixo hipotálamo-hipofisário-adrenal, e pode ser suspensa caso se observem efeitos colaterais. A potência antiinflamatória dos diversos preparados de GC é bastante variável, devendo-se tomar cuidado para se fazer a substituição de um preparado por outro.
O diagnóstico das alterações psiquiátricas induzidas por GC continua sendo um problema médico, sobretudo em pacientes com doenças que também podem causar distúrbios semelhantes.
Referências
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