Órgão Oficial do |
Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM |
especial |
Interconsulta psiquiátrica e oncologia: interface em revisão
Consultation-liaison psychiatry and oncology: a review
Vanessa A Citeroa, Sérgio B Andreolib, Luiz
AN Martinsc e Maria T Lourençoa
aDepartamento
de Psiquiatria e Psicologia do Centro de Tratamento e Pesquisa Hospital do Câncer
A.C.Camargo.
bNúcleo
de Estatística e Metodologia Aplicadas do Departamento de Psiquiatria
da Unifesp-EPM. cDepartamento de Psiquiatria da Unifesp-EPM.
Resumo Descritores |
|
Abstract Keywords |
Introdução
à interconsulta psiquiátrica
A interconsulta psiquiátrica desenvolveu-se na década de 1930
dentro do hospital geral, constituindo uma das formas de institucionalização
das concepções psicossomáticas em medicina.1-3 Ela
é considerada uma subespecialidade da psiquiatria, atuando na interface
entre a psiquiatria e o restante da medicina,4 e se ocupa da assistência pelo fornecimento de
consultoria psiquiátrica e do ensino da pesquisa e de aspectos psiquiátricos
e psicossociais para o médico, procurando compreender e desenvolver propostas
de intervenção sobre as reações psicossociais do
adoecimento físico, as complicações psiquiátricas
de cada doença, o comportamento anormal diante do adoecer, a prevalência
de morbidade psiquiátrica no “setting” médico e a efetividade
do seu atendimento.5 A importância dos serviços de interconsulta
psiquiátrica em hospitais gerais decorre da constatação
de que mais da metade dos pacientes internados apresentam algum transtorno psiquiátrico
associado ao seu problema médico.6
Dentro desse contexto, a interconsulta psiquiátrica entrou nos serviços de oncologia devido à melhoria do prognóstico de diversos tipos de câncer pelos avanços nas possibilidades terapêuticas, que geraram o aumento da sobrevida do paciente oncológico nos últimos anos.7 Segundo Holland e Massie,7 isso fez com que o oncologista se deparasse com uma necessidade: a de reconhecer e compreender o estado psíquico do paciente, dada a influência que esse estado exerce sobre a condição clínica de quem está enfermo. Percebeu-se também a importância da participação ativa do paciente em seu tratamento, uma vez que os procedimentos terapêuticos podem produzir efeitos desagradáveis. Tristeza e angústia são normalmente esperadas como respostas a momentos dolorosos da vida – como ter, por exemplo, câncer em estágio avançado – mas, no entanto, torna-se necessário distinguir o sentimento normal do patológico a fim de avaliar o momento de intervir.8
Interface com a oncologia
O diagnóstico de câncer causa angústia no paciente, e a capacidade de elaborar o adoecer depende do seu nível de ajustamento emocional, do momento que está passando em sua vida (se está com planos de formar uma família, uma carreira profissional), da presença de parentes e amigos que o apóiem emocionalmente e da doença em si – se os sintomas são incapacitantes, se há presença de dor, qual o sítio do câncer, o tratamento requerido e o prognóstico.9 No entanto, somente 2% dos 47% de pacientes com câncer, que apresentam transtorno psiquiátrico, recebem atendimento especializado.10
Hardman e Maguire11 avaliaram 126 pacientes internados e, usando a CID-9, perceberam que 29% tinham transtorno psiquiátrico, sendo que 5% eram graves (principalmente ansiedade). Não foi encontrada associação entre gravidade da doença oncológica e transtorno psiquiátrico, mas foi achada ligação entre o quadro psiquiátrico desenvolvido e o tipo de câncer ou tratamento a que o paciente foi submetido. Mastectomia, quimioterapia citotóxica e colostomia trazem alta prevalência de transtorno psiquiátrico. Por isso, o reconhecimento dos quadros psiquiátricos depende muito do médico, da enfermeira e de um bom instrumento de triagem. Já o estudo de Pettingale,12 usando variáveis clínicas como tipo histológico, extensão da doença e tratamento, mostrou não haver associação positiva dessas variáveis com a depressão no câncer de mama, mas, sim, em relação aos linfomas de Hodgkin e não-Hodgkin.
O estudo de Derogatis13 é um levantamento da prevalência de quadros psiquiátricos feito em 3 centros oncológicos com 215 pacientes internados e ambulatoriais selecionados randomicamente. Ele aponta que os pacientes oncológicos se distribuem, do ponto de vista psicopatológico, da seguinte forma: 53% se ajustam dentro dos critérios de normalidade ou estresse (não preenchem critérios diagnósticos segundo a classificação do DSM-III) e 47% têm quadros patológicos. Dentre esses últimos, 85% têm quadro de ansiedade e/ou depressão, sendo 68% ansiedade ou depressão reativa (quadros de ajustamento), 13% depressão maior, 8% quadro cérebro orgânico, 7% transtorno de personalidade e 4% transtorno de ansiedade pré-existente.
Segundo Coenson,14 a alta prevalência de transtornos psiquiátricos em pacientes com câncer é esperada, pois esses pacientes convivem com a dor, o desfiguramento, a perda da função sexual, a dependência, o isolamento, a separação e a morte, além de terem de suportar os efeitos colaterais da quimioterapia e da radioterapia, os freqüentes retornos ao hospital (muitas vezes resultando em internações inesperadas), os altos gastos e outras mudanças que atingem também suas famílias. Para Weisman,15 se o médico for capaz de avaliar a vulnerabilidade do paciente, o resultado das avaliações psiquiátricas pode se tornar útil para as intervenções práticas, com o objetivo de ajudar o doente a lidar com o problema de forma mais adequada.
Carrol e Kathol,16 usando “Hospital anxiety and depression scale”, avaliaram 930 pacientes com câncer, internados ou não, e encontraram 47,6% com transtorno psiquiátrico, sendo 23,1% ansiedade, 17,7% depressão e 9,9% outros. Os autores concluem que o transtorno depressivo de ansiedade pode interferir substancialmente no conforto do paciente, na qualidade de vida e na habilidade de decidir apropriadamente pelos tipos de tratamento.
Para Massie e Holland,8 o paciente oncológico com maior risco para depressão apresenta história anterior de transtorno afetivo ou alcoolismo, câncer em estágio avançado, menor controle de dor, ou faz uso de substâncias que propiciam a depressão (como a vincristina, vinblastina, anfotericina B, interferon, prednisona, dexametasona) ou tem outras doenças físicas que a causam. Por isso, a avaliação clínica desse paciente deve sempre ser cuidadosa, com atenção para os sintomas, para os estados mental e clínico e para o efeito do tratamento do câncer. Cabe à equipe oncológica perceber esses sintomas e propiciar o tratamento adequado para a depressão.
Em relação ao quadro clínico da depressão, Massie e Holland8 o descrevem como medo da morte e tristeza pela perda de saúde, e afirmam que o tratamento deve incluir psicoterapia breve suportiva, medicação antidepressiva e, eventualmente, eletroconvulsoterapia. Os sintomas somáticos da depressão, como perda de peso, fadiga, retardo motor e anorexia, misturam-se com os sintomas da própria doença oncológica e do tratamento orientado, o que facilita a superestimação da depressão.17 Para Bukberg,18 entre os sintomas somáticos da depressão, o único que pode expressar o quadro de depressão no paciente com câncer é a insônia, por ser o único que não se justifica pelo câncer.
Carrol e Kathol16 descrevem que pacientes internados ficam mais deprimidos do que os não hospitalizados (13,9% e 7,8%, respectivamente) e que a depressão é mais freqüente nos pacientes com doença ativa do que nos remitidos.
A maioria dos estudos na área de psiquiatria oncológica discute a prevalência da depressão, que é o transtorno mais freqüente entre os pacientes oncológicos. Num artigo de revisão, Massie e Holland8 assinalaram que se a prevalência de depressão na população é de 6%, pelo menos 6% dos pacientes com câncer deveriam indicá-la. No entanto, diversos estudos investigaram esse fato e mostraram uma variação na prevalência de depressão de 9% a 58% em pacientes oncológicos. Esses estudos apresentam metodologias distintas, com pacientes com câncer em várias localizações e com graus distintos de gravidade. Os estudos com maiores taxas são aqueles que definem depressão por uma lista de sintomas, sem usar critério específico. Num artigo mais recente,9 Massie e Popkins assinalam que esses dados não são confiáveis por que os índices mais altos foram alcançados em estudos sem escalas padronizadas de diagnóstico, sem se distinguir o sítio do tumor, a presença de dor etc.
Estudando as solicitações de atendimento numa unidade de ginecologia oncológica num período de 7 anos, McCartney10 comparou as avaliações psiquiátricas feitas nos primeiros 4 anos, sem que houvesse um serviço de interconsulta psiquiátrica, com os últimos 3 anos, após a implantação do serviço, e encontrou um aumento da solicitação de atendimento psiquiátrico significativo (de 4% para 9% da população internada). Percebeu, também, um aumento na detecção de transtornos depressivos menores nos pacientes e, conseqüentemente, a melhoria da qualidade de vida dos mesmos.
Existem poucos artigos na literatura sobre atendimentos em interconsulta em pediatria e sabe-se que Rait,19 estudando os pacientes internados na unidade pediátrica do “Memorial Sloan-Kettering Cancer Center”, recebeu, principalmente, pedidos de avaliação para alteração de comportamento e depressão, sendo a necessidade de avaliação da família do paciente um dos menos requisitados. No Brasil, Costa e Lourenço20 descrevem que 23% dos pedidos de interconsulta no Hospital do Câncer, em São Paulo, foram feitos pelo serviço de pediatria e que 61% deles referiam dificuldades da equipe no manejo junto aos familiares dos pacientes.
Transtornos de ajustamento são estados psicológicos intermediários entre a patologia psiquiátrica franca e uma reação normal sob estresse, que levam a uma piora da qualidade de vida do paciente.21 O estudo de Ravazi22 mostra que se pode encontrar, em pacientes oncológicos internados, de 11% a 21% de quadros de transtorno de ajustamento.
Em relação à ansiedade, Noyes Jr23 relata que é muito difícil medi-la, mesmo com escalas, principalmente por que às vezes é muito complicado distinguir o que é ansiedade e o que é depressão.
Em relação aos quadros confusionais, Massie e Holland8 afirmam que os aspectos fenomenológicos de um quadro psicótico mobilizam mais angústia do que os ligados à depressão ou à ansiedade, que são muitas vezes considerados normais no paciente oncológico. Breitbart24 descreve que o “delirium” é o transtorno mental mais comum no hospital geral e que entre pacientes com câncer a taxa de prevalência é de 25% (trabalhando-se com pacientes terminais chegou-se a 85%).
Passik25 refere que existem menos de 5% de pacientes com câncer que fazem abuso de substâncias, no entanto esse dado parece refletir um subdiagnóstico do problema. Transtorno de personalidade ocorre em apenas 10% da população e há razões para pensar que no hospital essa prevalência seja maior, pois é um grupo com tendências a adquirir doenças clínicas.26
Muitas vezes o tratamento é o causador de transtornos psiquiátricos, como é descrito com o transplante de medula óssea que, por ser um processo agressivo em que o paciente corre risco de vida pela quimioterapia altamente tóxica seguida de um longo período de isolamento, propicia a eclosão de sintomas depressivos, ansiosos ou de desorientação, o que ocorre em cerca de 15% a 25% desses pacientes.14
Uma questão importante em oncologia é a dor, sintoma freqüente causado pelo tumor. Torna-se, então, fundamental entender a relação do sintoma psiquiátrico com a dor. Derogatis13 encontrou que 39% dos pacientes com diagnóstico psiquiátrico tinham dor significativa, sendo que 69% desses receberam diagnóstico de transtorno de ajustamento e 15% diagnóstico de depressão maior. No entanto, ele encontrou 19% de pacientes com dor significativa e sem diagnóstico psiquiátrico.
Apesar das intervenções psicológicas para pacientes com câncer terem se desenvolvido lentamente nas últimas décadas, têm-se feito esforços para enfatizar a importância desse tipo de atendimento para a melhoria da qualidade de vida do paciente.27 Outras formas devem ser oferecidas a eles, como a terapia cognitiva, os grupos psicoterápicos e os educacionais. No que diz respeito ao paciente internado, a terapia cognitiva deve ser considerada. Segundo Strain,21 os pacientes com quadros mais graves se beneficiam mais de medicações (psicoestimulantes ou antidepressivas) do que de psicoterapia breve.
Conclusão
Os estudos revisados sugerem que o câncer propicia o aumento da morbidade psiquiátrica, principalmente de quadros depressivos e de ajustamento, porém nenhum deles foi conclusivo a esse respeito. No entanto, esclareceram os fatores psicológicos dos transtornos depressivos e de ajustamento, mas não se aprofundaram nos possíveis fatores psiquiátricos e clínicos. A psiquiatria oncológica carece de estudos mais conclusivos sobre a epidemiologia, a descrição clínica e a terapêutica de transtornos psiquiátricos em pacientes oncológicos. As metodologias distintas não permitem uma comparação acurada dos dados e as questões fundamentais para sua compreensão permanecem em discussão, como a relação entre o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos e o tipo histológico do tumor, a presença de dor, as técnicas terapêuticas oncológicas e a gravidade da doença oncológica.
Referências
Última atualização: