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Psiquiatria na prática médica  

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Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM

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Clinica Médica

Adesão a tratamentos médicos ou “compliance” é uma perspectiva de abordagem que leva em conta as ações e omissões de um determinado paciente. O processo verifica não apenas os gestos e atitudes imediatamente observáveis, mas um todo comportamental mais complexo. Três componentes desse processo são: a noção de doença que possui o paciente, o lugar do médico em seu imaginário e a idéia de cura ou a melhoria que se forma na mente daquele que está em tratamento.


Adesão a tratamentos médicos

José Q dos Santos

   


José Quirino dos Santos

 

José Quirino dos Santos
Professor de antropologia na USP e de antropologia médica na Unifesp/EPM

 

Correspondência
José Quirino dos Santos
Gridec - Unifesp/EPM
Rua Botucatu, 685, Vila Clementino
CEP 04023-062, São Paulo, SP
E-mail:
jquirino@uol.com.br

 

Adesão a tratamentos médicos (ou “compliance”, em inglês) é uma perspectiva de abordagem que leva em conta as ações e omissões para certos comportamentos, de interesse médico, de um determinado indivíduo na condição de paciente clínico. Caracterizada como um processo, a questão não é tão simples como aparenta, pois não se esgota nos gestos e nas atitudes imediatamente observáveis, sendo, pelo contrário, parte de um todo comportamental mais complexo que chega a incluir outros atores sociais. Além disso, apresenta variações significativas de uma cultura para outra e, mesmo dentro de uma mesma cultura, de um segmento cultural para outro.

Destacam-se aqui, e se descrevem brevemente, três componentes desse processo, encontráveis em várias culturas nas quais existe a figura do médico com formação científica: a) a noção de doença que possui o paciente, b) o lugar do médico no imaginário do paciente e c) a idéia de cura ou a melhoria que se forma na mente do paciente. Tais componentes contribuem, cada um à sua maneira, para que o paciente forme uma opinião e tome decisões com respeito à sua doença, sendo que nelas está sempre presente a idéia de continuar ou de interromper o tratamento.

O primeiro componente, a noção de doença, talvez seja o mais amplo e internamente mais diversificado dos três. Em cada cultura complexa, o imaginário sobre a doença é sempre muito rico, incluindo concepções por vezes completamente inesperadas que formam um leque de significações conceituais. Esse leque, num primeiro momento, ajuda a criar o sistema classificatório local das doenças e, num segundo momento, a ele obedece, fazendo funcionar suas lógicas internas que por vezes podem originar concepções bizarras sobre a doença. De forma geral, pode-se dizer que tais elaborações mentais não são fruto do puro devaneio poético, mas que guardam alguma relação com momentos históricos específicos, refletindo mudanças culturais na apreensão da realidade.

Muita coisa já foi escrita sobre o assunto. Talvez o texto mais bem-escrito sobre isso, em termos de sistematização, análise e vinculação histórica, seja o de Uta Gerhardt, que apresenta suas “idéias sobre a doença”.1 Ela descreve as principais formas correntes de classificação das doenças e mostra sob quais linhas teóricas das ciências sociais elas podem ser melhor compreendidas. Esse trabalho mostra que, em função da concepção de certas doenças particulares, o tratamento pode, por exemplo, ser tão indesejável para o paciente quanto uma punição, sendo facilmente abandonado. Em outro exemplo, ela indica que em certos contextos culturais algumas doenças sugerem uma grande perda para o doente e esse fato pode passar a representar uma obrigação para os próximos, parentes ou amigos, de intervir permanentemente na vida do doente enquanto ele permanece vivo, o que comprometeria seus próprios projetos de vida.

Em textos de outros autores relevantes, uma definição científica da doença é evitada por ser inevitavelmente confusa, por vezes significando uma distinção meramente nominal (em inglês) entre “disease”, palavra reservada à caracterização científica e objetiva do assunto e que se avizinha da noção ambígua de patologia, e “illness”, que passa a recobrir as sensações pelas quais o indivíduo doente percebe seu problema e o narra.2

Ainda em outras aproximações de peso sobre a questão da doença, essa aparece como faceta (negativa) de uma categoria mais ampla e profunda que permanece desconhecida. Ligeiramente é sugerida aqui e ali por outras facetas que vão sendo expostas pelo estudo científico, como a da pureza, que se liga ao permanente exercício de lavagem e de eliminação do seu contrário (a impureza), ou a da religião, que envolve permanente exercício de excomunhão do seu oposto (a imperfeição e a negatividade) ou ainda a doença, que representa a manifestação do mal em si.3  

Qualquer que seja, entretanto, a posição escolhida para apreciar a concepção de doença do paciente, ver-se-á que ela surge como fenômeno universal sempre presente em todas as culturas complexas, como parte formadora da dicotomia entre o bem e o mal e necessariamente contraditória com a noção científica de patologia que o médico possui.

Quanto ao lugar do médico no imaginário popular, muita coisa também já se escreveu sobre o assunto, sobressaindo-se a idéia de representações recíprocas entre dois atores sociais, sendo um (o médico) detentor de conhecimentos e procedimentos que interessam ao outro (o paciente). A relação entre médico e paciente, portanto, desempenha papel fundamental na concepção que o paciente forma do médico, a qual, aliás, jamais se aproxima da objetividade com que o médico gostaria de ser visto.

Fica evidente que essa relação implica uma grande desigualdade de perspectivas. O conhecimento aparentemente flui de um só lado para o outro. Mas isso é mera aparência, pois o outro (o paciente) não é tão passivo quanto se supõe. Ele dispõe, permanentemente, de caminhos sociais alternativos, capazes de lhe dar uma satisfação mais próxima de seus desejos e sentimentos, que, o médico – um cientista por definição – por vezes não pode lhe fornecer. Além disso, o paciente dispõe também de recursos farmacológicos comumente eivados de religiosidade, que são impensáveis e inadmissíveis, pela perspectiva científica do médico.

Adicionalmente, o médico muito freqüentemente é observado pelo mesmo prisma com que são vistos outros curadores, curandeiros e xamãs. Isto é, de um lado os clientes se afastam do médico pelo fato de ele ser detentor de conhecimentos e, sobretudo, de procedimentos ininteligíveis e não-verificáveis pelos instrumentos de medição que a cultura lhes proporciona. Mas, por outro, dele se aproximam, como o fariam com outra espécie de conselheiro-curador, pois seu discurso é tomado como mágico, não tendo nenhuma relação com a ciência e sua objetividade incompreensível.4

O terceiro componente, a idéia de cura ou melhoria, pode ser compreendido como relacionado com os outros dois e deles resultante. Pois no decorrer das consultas sucessivas, que uma doença de determinado indivíduo possa ocasionar, sedimentam-se a interpretação e a reinterpretação do lugar e do papel do médico no tratamento e cura de sua doença. A cada nova consulta, o cliente se informa com uma idéia do que seria a melhoria e a cura no seu caso específico, mudando de postura sempre que novas informações lhe estejam disponíveis.

Essa é a idéia-espelho que ele utiliza para aferir sua situação e as evoluções esperadas. Está aí o critério básico que utiliza para aferir a ação do médico sobre sua doença. A própria idéia de esperança passa por esse processo de adaptação, para servir a seu caso, naquele momento específico. Porém, não se pode esquecer de que ele lê, absorve, analisa, interpreta e, por fim, reage de acordo com sua formação, com sua habilidade ou aptidão de ver o mundo. Ele decide, então, segundo as categorias de que dispõe, se continuará ou não um determinado tratamento. Quem o ajuda nessa decisão pode ser seus parentes e os amigos, raramente o médico, pois esse está envolvido na questão.

Referências

  1. Gerhardt U. Ideas about illness. New York: New York University Press; 1989.
  2. Brown PB, Inhorn MC, Smith DJ. Disease, ecology and human behavior. In: Sargent CF, Johnson TM, editors. Medical Anthropology. London: Praeger; 1996.
  3. Douglas M. Purity and Danger. In: Sargent CE, Johnson TM, editors. Routledge; 1966.
  4. Quirino JS. Household treatments based on sociocultural classifications of disease. J Clin Epidemiol 1999;52(Suppl 1):J-8S.

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