Órgão Oficial do |
Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM |
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Somatização
e conceitos limítrofes: delimitação de campos
José A Bombana
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José
Atílio Bombana |
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Correspondência |
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O conceito de somatização tem sido utilizado com freqüência no meio médico e psiquiátrico, embora sua clara significação permaneça obscura para muitos dos seus usuários. A existência de outros conceitos que, embora distintos, mantêm correlações, entre os quais podem-se citar a conversão, os transtornos somatoformes, a hipocondria, a “DNV” e a própria psicossomática (com as chamadas “doenças psicossomáticas”), torna necessária sua melhor delimitação.
A somatização corresponde a uma tendência de experimentar e de comunicar distúrbios e sintomas somáticos não explicados pelos achados patológicos, atribuí-los a doenças físicas e procurar ajuda médica para eles. É usualmente assumido que essa tendência torna-se manifesta em resposta a estresse psicossocial acarretado por situações e fatos da vida particularmente importantes para o indivíduo.1
A somatização pode
ocorrer em variadas formas:
a) como um modo de expressar-se (uma variação individual normal);
b)
indicando uma doença orgânica
ainda não diagnosticada;
c) como parte de outras patologias
psiquiátricas (ex: depressão);
d) como um transtorno somatoforme.
As somatizações são muito freqüentes (muito mais do que os transtornos somatoformes propriamente ditos, com os quais não devem ser confundidas), sendo responsáveis por um número desproporcionalmente alto de consultas médicas e gerando importantes gastos no sistema de saúde.
Embora qualquer pessoa possa somatizar – se certo limiar de desconforto psíquico for ultrapassado –, os somatizadores típicos tendem a se mostrar bastante “concretos”; indicam pobreza da vida afetiva e raramente relatam seus sonhos. Freqüentam principalmente os serviços médicos de atenção primária e não os serviços psiquiátricos. Existe uma maior prevalência no sexo feminino.
A conversão, conceito originário da psicanálise, corresponde a um mecanismo de formação de sintomas próprio da histeria. Consiste numa transposição de um conflito psíquico (e numa tentativa de resolução) em sintomas somáticos, basicamente tomando lugar nos sistemas neuromuscular voluntário (paralisias, por exemplo) ou sensório-perceptivo (anestesias, por exemplo). Sua característica básica é ter uma significação simbólica, ou seja, o corpo exprime representações que foram recalcadas. Freud introduziu esse termo referindo-se ao “salto do psíquico para a inervação somática”.2
Os transtornos somatoformes correspondem a uma categoria diagnóstica introduzida recentemente (1980) nas classificações internacionais de doenças. Na CID-103 compreendem 7 diferentes entidades clínicas.
Caracterizam-se pela presença por longo tempo (meses ou anos) de queixas freqüentes de sintomatologia física, que sugerem a presença de um substrato orgânico, mas que não são totalmente explicadas por nenhuma das patologias orgânicas conhecidas. Também não são totalmente explicáveis pelos efeitos diretos decorrentes da utilização de uma substância (drogas, álcool), nem por um outro transtorno mental (transtorno do pânico, por exemplo). Mesmo na presença de doenças orgânicas comprovadamente diagnosticadas, não existe uma explicação lógica para toda a sintomatologia referida.
Outra característica marcante desses transtornos é a dificuldade no estabelecimento de um vínculo médico-paciente positivo, em decorrência de um questionamento constante por parte do paciente em relação às assertivas emitidas pelo profissional, principalmente aquelas referentes à provável inexistência de substrato orgânico detectável. Em muitos casos existem transtornos de personalidade associados.
Outro conceito que deve ser mencionado é o da hipocondria. Corresponde a um dos mais antigos termos médicos relacionados ao que viria se constituir no campo da moderna somatização (juntamente com a histeria).
Atualmente a hipocondria é categorizada como uma das sete entidades clínicas dos transtornos somatoformes (mencionadas acima). Embora haja a perspectiva de separá-la dos demais diagnósticos, sabe-se que sintomas hipocondríacos existem também em outros quadros psiquiátricos (depressão, por exemplo) ou mesmo como um traço de personalidade presente em maior ou menor grau na população geral.
Como transtorno psiquiátrico, a hipocondria diz respeito a uma interpretação errônea de sensações corporais corriqueiras, que são percebidas como anormais, levando ao medo e à crença de se estar gravemente doente. Já foi descrita como a “paranóia das vísceras”, estando o perseguidor dentro do próprio corpo do paciente.
Os hipocondríacos estão exageradamente atentos ao próprio corpo numa atitude auto-erótica, mas também o vivenciam como doente, demonstrando aspectos auto-agressivos.4
A DNV, abreviatura de distonia neurovegetativa, é uma das designações recebidas por um considerável grupo de pacientes com queixas psíquicas e físicas freqüentemente entrelaçadas e imprecisas. Às vezes também são chamados pejorativamente de “peripaque” ou “poliqueixosos” (principalmente em instituições públicas). O termo corresponde a uma formulação sindrômica e não a uma entidade clínica isolada. Engloba indistintamente transtornos de ansiedade, de ajustamento, somatoformes e conversivos.5
A psicossomática é uma atitude de medicina integral que concebe o ser humano como ser biopsicossocial e não propriamente como um ramo da psiquiatria. Compreende uma ideologia sobre a saúde (com suas práticas e suas doenças), um campo de pesquisas sobre esses fatos e, ao mesmo tempo, uma prática (de uma medicina integral). Hoje a psicossomática estaria mais ligada à visão ideológica desse movimento e às pesquisas que se fazem dessas idéias (sobre a relação corpo-mente e sobre os mecanismos de produção de enfermidades, principalmente sobre os fenômenos do estresse).6
No passado, algumas doenças (hipertensão arterial, retocolite ulcerativa, úlcera gastroduodenal, asma brônquica, eczema e psoríase, hipertireoidismo, artrite reumatóide etc.) foram chamadas de “doenças psicossomáticas”, tentando-se traçar perfis de personalidade específicos para cada um desses grupos de pacientes. Essa concepção foi progressivamente se mostrando inconsistente.
O adjetivo “psicossomático”, aplicado às doenças e aos pacientes, parece redundante, pois o homem é psicossomático por definição. Seu uso pode ser indevidamente entendido como uma implicação de que fatores psicológicos não exercem determinado papel em doenças que não são assim chamadas.
Embora perante uma visão inicial essas diferenciações possam pouco representar, é somente a partir delas que se pode entender os pacientes em suas especificidades, dando-lhes assim uma abordagem mais adequada e efetiva. O esforço de discriminação certamente reverterá em lucro para os médicos (aprimoramento dos conhecimentos) e para os pacientes (melhor tratamento).
Referências
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