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Infectologia

Um dos grandes obstáculos vividos pelos que trabalham na área de saúde é constatar que, embora bem informados, os pacientes não abandonam práticas conhecidamente perigosas com o objetivo de prevenir o desenvolvimento de uma doença diagnosticada ou evitar outras. A Aids é exemplar nessa questão. Uma vez identificado o vírus HIV e suas formas de transmissão, é necessário evitar que ele atinja a corrente sangüínea. A prevenção envolve, portanto, mudanças de comportamento da população.


Informação e comportamento: o exemplo da Aids
Denise Martin

   


Denise Martin

 

Denise Martin
Pesquisadora do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM

 

Correspondência
Denise Martin
Gridec
Rua Botucatu, 685
04023-062 São Paulo, SP
Tel.: (0xx11) 5576-4479
E-mail:
coviello@amcham.com.br

 

Neste texto pretende-se tratar das dificuldades da prevenção da Aids no tocante à contaminação por via sexual. O assunto poderia ser abordado por várias especialidades médicas que se envolvem na complicada tarefa de convencer o paciente a tomar certas atitudes ou obedecer a algumas regras. Desde o início da epidemia, o assunto foi tratado de diversas maneiras, mais ou menos conservadoras como, por exemplo, a abstinência sexual, a redução de parceiros sexuais, o uso de preservativo em todas as relações sexuais e a camisinha feminina. O pressuposto básico das campanhas é a disponibilidade de informação que levaria à mudança de comportamento. A equação automática que se realiza é a seguinte: informação correta igual mudança de comportamento.

Excluindo-se razões socioeconômicas para a prevenção da Aids, como o alto custo dos preservativos, o baixo nível de escolaridade da maioria da população, que, embora não menos importantes, não são tratados neste texto, observa-se que mudanças de comportamento como as que se recomendam à prevenção da Aids não são fáceis de ocorrer.

Estudos científicos e pesquisas de opinião1,2 mostram que, apesar da população brasileira de grandes centros urbanos estar razoavelmente informada sobre a doença, existe um descompasso entre o nível de informações sobre a doença e o que concretamente acontece em termos de prevenção.

A antropologia pode contribuir para entender a complexidade dessa questão. Para compreender as dificuldades da prevenção da Aids é necessário considerar que qualquer ação preventiva, como qualquer outro fato social, está cercada de códigos, relações e interpretações sociais e culturais.

Uma questão fundamental é a racionalidade implícita nos pressupostos das ações preventivas. Nesse contexto, tudo se passa como se o conhecimento técnico-científico da doença, portanto baseado na racionalidade, por si fosse suficiente para convencer as pessoas a mudar de comportamento. Exemplos de pesquisas realizadas com mulheres ilustram o quanto o comportamento cotidiano está distante de um cálculo racional dos riscos a que elas se expõem, como será mostrado a seguir.

Uma das questões mais surpreendentes na pesquisa etnográfica realizada em Santos,3 com mulheres que se contaminaram com o HIV por via sexual em uma relação afetiva (casadas ou não), foi a declaração de várias entrevistadas sobre o conhecimento da possibilidade do parceiro já estar infectado. Elas contaram que desconfiavam que o companheiro poderia ser HIV positivo de várias maneiras: algumas sabiam do uso de drogas injetáveis, outras foram avisadas por familiares ou amigos, outras simplesmente constatavam que o comportamento dos parceiros mais cedo ou mais tarde levaria à infecção pelo vírus. Todavia, elas nada fizeram em termos de prevenção e se contaminaram também.

Outro exemplo é o das prostitutas de Santos. Em pesquisa sobre a noção de risco nessa população,4 observou-se que, embora informadas sobre os perigos cotidianos a que se expunham, a exigência do uso do preservativo não era necessariamente uma constante. Tratava-se de uma população bem informada, com acesso a serviços de saúde que realizam o teste HIV e com acesso gratuito a preservativos. As entrevistas com essas mulheres mostraram que a exposição ao perigo de contaminação ocorria de várias formas. Embora elas tivessem um discurso "politicamente correto" sobre a exigência do preservativo em todas as relações sexuais, esse fato não ocorria conforme desejado para a prevenção da doença. Algumas não exigiam o preservativo se o cliente oferecesse pagar mais pelo programa, outras nem pediam se gostassem do cliente e desejassem estabelecer uma relação baseada na afetividade dentro do contexto da prostituição. Ou seja, a prevenção da Aids poderia ou não ocorrer, dependendo do momento e do contexto da relação com o cliente.

Esses exemplos mostram que, apesar de informadas sobre a doença, essas mulheres não mudaram de comportamento, mesmo com a ameaça da Aids. O que poderia, na prática clínica, ser ampliado para várias outras situações. A questão fundamental é por que a informação não leva, necessariamente, às desejadas mudanças de comportamento.

A etnografia mostra que o que está em questão não é o desconhecimento do risco a que se expuseram. A informação é fundamental para a prevenção de doenças, sendo uma questão de cidadania. Todavia, não é o único ingrediente presente nessa complexa relação entre saber/conhecer a doença e fazer algo concreto em termos de prevenção.

A antropóloga Mary Douglas,5 em seu estudo sobre a noção de risco, chama de inocente o modelo de percepção do risco que sempre chega à conclusão de que deveria haver mais educação para o público desinformado, sugerindo que as pessoas se arriscam por não saberem dos perigos. Para essa autora, é improvável que uma maior comunicação reconciliaria diferenças de opinião sobre riscos. Um risco (aqui entendido como um perigo conhecido) não é somente a probabilidade de um evento, mas também a provável magnitude de seus resultados, e tudo depende do valor que é dado aos resultados. Mary Douglas argumenta que a análise leiga sobre o comportamento das pessoas frente aos riscos é errada justamente porque abstrai da questão sobre um risco particular das questões morais e políticas nas quais as pessoas normalmente estão envolvidas.

Em outras palavras, essa autora mostra duas questões muito importantes: a de que as pessoas fazem parte de um contexto cultural em que suas escolhas fazem sentido ou não de acordo com o que é valorizado socialmente, e para se pensar a prevenção não se pode ter um olhar individual e particular sobre o problema.

Transpondo esse raciocínio para a prevenção da Aids, é necessário buscar a lógica que dá sentido ao comportamento arriscado das mulheres entrevistadas. Embora contaminadas ou expostas ao HIV em contextos muito diferentes (e a prostituição é uma situação limite quanto aos perigos), a cultura é o filtro pelo qual os perigos são reconhecidos e prevenidos ou não.

A prevenção de doenças, no caso a Aids ou qualquer outra que envolva mudanças de comportamento, é difícil de ocorrer. Todavia, não é impossível. Uma possível estratégia seria o discurso de prevenção tentar se aproximar ao máximo do universo cultural da população que pretende atingir. É bom lembrar, também, que toda mudança de comportamento tem limites, sejam eles culturais, sociais, econômicos ou psicológicos que devem ser respeitados, ainda que caminhem no sentido contrário à promoção da saúde em geral.

Referências

  1. Martin D. Mulheres e AIDS: uma abordagem antropológica [Dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1995.
  2. Prevenção através da mudança de hábito ainda é pequena. Folha de São Paulo. Janeiro 13, 1991.
  3. Adeodato S. Comportamento de brasileiros não mudou com a AIDS. Jornal do Brasil. Setembro 29, 1991.
  4. Martin D. Mulheres e AIDS: uma abordagem antropológica [Dissertação]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1995
  5. Martin D. A construção cultural do risco: o cotidiano da prostituição em Santos [Tese]. São Paulo: Universidade de São Paulo; 1999.
  6. Douglas M. Risk and Blame. London/ New York: Routledge; 1992.

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Volume 33, número 3

jul · set 2000

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