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editorial |
Transformando a educação médica: idéias soltas, compromisso firme
A obra de Machado de Assis é permeada por uma convicção: não existe criação sem tradição que a nutra, assim como não existe tradição sem criação que a renove.
Carlos Fuentes
No Brasil, o ensino de pós-graduação na área médica vem sendo sistematicamente avaliado;1 por outro lado, é recente, na universidade brasileira, o interesse de examinar a qualidade do ensino de graduação em medicina.2,3 No processo de seleção do aluno de medicina, deveriam ser decisivas a cultura e a formação humanista, o que não ocorre atualmente com os modelos de exame vestibular utilizados. Estes estão, com freqüência, selecionando um futuro engenheiro do corpo humano e não um futuro médico. No Canadá, alunos de medicina não são selecionados entre os que obtêm nota máxima nas matérias básicas (química, física, biologia etc.), mas entre os que, além de bom desempenho escolar prévio, demonstram interesses culturais, ou mesmo esportivos, mais amplos.
A universidade não pode devolver à sociedade um cidadão pior do que aquele vindo do vestibular. O químico Otto Gottlieb demonstrou que a composição química de uma mesma espécie de planta varia com as condições ambientais presentes. A Ocotea pretiosa, árvore conhecida como canela-sassafrás ou sassafrás, no clima frio do Vale do Itajaí (Santa Catarina) produz safrol, óleo essencial, de valor econômico. No ambiente tropical do Rio de Janeiro, produz principalmente o nitrofenilato, que lhe confere o cheiro de canela. O currículo do curso de medicina pode, dada a impossível pretensão de ensinar tudo, desumanizar o aluno e influir negativamente em sua saúde mental. Não são raros os casos de descontrole emocional/psicológico entre os estudantes de medicina. Por outro lado, a grade curricular e o ambiente universitário podem estimular o desenvolvimento intelectual e o amadurecimento social do aluno.
A reforma denominada "currículo nuclear", que a Universidade Federal de São Paulo iniciou em seu curso de Medicina em 1997, objetiva mudar a mentalidade ginasial que prevalece no alunado e, muito mais grave, em parte do corpo docente. O currículo nuclear (parte do currículo pleno que deve ser adquirido por todo graduado em medicina) é completado pelos módulos eletivos (complementares, uma manhã semanal), optativos (suplementares), pelo "tempo pró-aluno" (uma tarde livre semanal) e pela iniciação científica. Aspecto fundamental da reforma é o desenvolvimento de uma sistemática de avaliação do aprendizado, que seja coerente com a mudança realizada, já que o modo de avaliar determina o modo de estudar.4-5 Nas boas escolas médicas do país, a avaliação do conhecimento teórico adquirido pelos alunos (avaliação cognitiva) vem sendo feita adequadamente. A das habilidades, por outro lado, vem sendo feita de forma não sistematizada. O desafio das escolas é desenvolver sistemas de avaliação das habilidades e das atitudes necessárias ao exercício da medicina.3
É complexo o ensino da medicina, pois embora ela não seja uma ciência biológica, a base sólida de conhecimentos biomédicos é indispensável para seu exercício; mesmo não sendo uma ciência exata, diagnóstico e tratamento devem se basear em evidências demonstráveis; e, apesar de não ser ciência humana, inexiste sem a relação médico-paciente plena de compreensão e de confiança. É difícil equilibrar ciência e arte na formulação do futuro médico, ou, no dizer de Drummond, "infundir ritmo ao puro desengonço". Até o final do século XIX, quando um profissional dominava grande parte do conhecimento médico, a medicina podia ser ensinada por transferência pessoal, e individualizada, de conhecimentos e atitudes. Desde o início do século XX, e de maneira crescente, perdeu-se essa individualização; atualmente, um maestro (coordenador do curso) deve conduzir com harmonia o programa de graduação, envolvendo centenas de docentes. Professor não nasce feito: é necessário selecioná-lo e formá-lo criteriosamente. O desempenho docente deve ser avaliado e influir nos critérios para sua progressão na carreira acadêmica.
O exemplo vale mais do que as palavras: não existe projeto pedagógico que resista à imagem de um professor destratando o paciente ou lançando ponta de cigarro no corredor do hospital. O corpo docente deve ser composto de professores vocacionados e motivados. Um dia perguntaram a Balzac se era muito difícil escrever um romance, ao que ele respondeu: ou é muito fácil ou é impossível. O ensino médico precisa ter "alta hospitalar": o hospital é o pior ambiente para o desenvolvimento da relação médico-paciente, pois a responsabilidade pelo doente é diluída. O ambiente de nossos hospitais públicos, em particular, vai lentamente dessensibilizando os alunos, que perdem ao longo do curso a capacidade de se indignar com o atendimento desumano dado aos pacientes.
A queda na taxa de mortalidade ocorrida há um século na Europa e nos Estados Unidos pouco esteve relacionada a remédios, referindo-se mais a melhor nutrição e saúde pública. Das crianças que morrem antes dos 5 anos de idade, 98% estão no mundo subdesenvolvido. Nenhuma medida preventiva, isoladamente, será mais eficaz do que o hábito de lavar as mãos antes de tocar nos alimentos. Nenhuma medida terapêutica salva mais vidas do que o soro caseiro de reidratação oral. O médico precisa estar consciente desses fatos, mas apenas o conhecimento não é suficiente. O desafio é equipar intelectualmente o aluno durante o curso para que, como médico, o cidadão encontre seu modo de contribuir para a solução de problemas que exigem políticas públicas de desenvolvimento mais do que atitudes médicas.
Só o médico competente pode ser ético e humano no exercício profissional. A competência deve ser complementada pelo carinho, pela educação, pela boa intenção, mas estas qualidades humanas não substituem a competência. A incompetência médica é desumana. Não podemos mais esperar para mudar a maneira como a medicina é ensinada no Brasil. Ou as escolas de medicina lideram a mudança, ou esta será imposta pela sociedade.
Durval R Borges
Departamento de Medicina - Universidade
Federal de São Paulo
Referências
Volume 33, número 3 |
jul · set 2000 |
Última atualização: