Órgão Oficial do |
Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM |
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Aspectos psicopatológicos relacionados à coréia de Sydenham*
Marcelo C Zapitelli,
Isabel AS Bordin e José A Del-Porto
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Marcelo C. Zapitelli |
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Correspondência
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Coréia de Sydenham é uma das manifestações clínicas maiores da febre reumática, que é uma complicação tardia, não supurativa, de infecções das vias aéreas superiores por estreptococos beta- hemolíticos do grupo A, caracterizada por lesões inflamatórias, usualmente localizadas no tecido conjuntivo dos órgãos acometidos, os quais podem ser o coração, as articulações, o sistema nervoso central, a pele e o tecido subcutâneo.
Essa enfermidade desenvolve-se devido a uma certa suscetibilidade de determinados indivíduos, os quais respondem de modo diferente a antígenos estreptocócicos, tanto no que se refere à resposta humoral quanto à celular, originando uma resposta imune cruzada contra tecidos humanos.
Quando as lesões comprometem o sistema nervoso, mais especificamente os núcleos da base e suas conexões com a região límbica, lobo frontal e tálamo, desenvolve-se o quadro denominado coréia de Sydenham, que se caracteriza por movimentos involuntários, rápidos, irregulares e sem finalidade dos membros, da face e/ou do tronco, geralmente associados à hipotonia e à diminuição da força muscular. Possui uma evolução auto-limitada, cuja duração pode variar de uma semana a dois anos, sendo as recorrências freqüentes.
A coréia de Sydenham é própria da idade escolar, acometendo meninas numa proporção duas vezes maior do que a observada em meninos. A freqüência de coréia, como manifestação clínica nos casos de febre reumática, tem girado em torno de 30% nos últimos anos. Em um estudo americano realizado com 74 pacientes com febre reumática, 31% deles apresentaram coréia como uma das manifestações.1 No Brasil, em uma pesquisa desenvolvida na cidade de São Paulo avaliando 738 pacientes com febre reumática no período de 1980 a 1990, encontrou-se a presença de coréia de Sydenham em 33,2% da amostra.2
Os estudos radiológicos, embora escassos e utilizando, no geral, pequenas amostras, têm demonstrado a presença de alterações nos núcleos da base dos pacientes coreicos. Em estudo utilizando ressonância magnética de crânio, observou-se um aumento do núcleo caudado, putamen e globo pálido em pacientes com coréia de Sydenham (n=24), quando comparados a controles normais (n=48).3 Em outro trabalho relatando dois casos, evidenciou-se, também, por ressonância magnética de crânio, hiperintensidade de sinal em T2 na cabeça do núcleo caudado e do putamen.4
Morbidade
psiquiátrica
A literatura ao longo dos anos tem demonstrado uma variada morbidade psiquiátrica
nas crianças e adolescentes com coréia de Sydenham.
Em 1912, Diefendorf enfatizou possíveis alterações psíquicas associadas aos sintomas neurológicos da coréia de Sydenham, dividindo-as em dois grupos: um no qual o comprometimento é menos intenso, constituindo-se por irritabilidade, ansiedade, instabilidade emocional, importante prejuízo da atenção, além da presença freqüente de pesadelos e de um apego exagerado da criança à sua mãe.5; o segundo grupo, mais raro, seria formado por quadros aparentemente confusionais, com rebaixamento de consciência acompanhado por alucinações, delírios e incoerência do pensamento, sendo que tal sintomatologia regredia em sincronia com a melhora dos movimentos coreicos.
Posteriormente, Ebaugh (1926), avaliando 32 crianças com coréia com idades variando de seis a 15 anos, demonstrou nessa amostra uma alta freqüência de labilidade emocional, irritabilidade, distúrbios do sono e dificuldade de concentração.6
Algumas décadas mais tarde, Chapman, Pilkey, Gibbons (1958), avaliando de modo detalhado oito crianças e adolescentes com coréia de Sydenham, observaram uma marcada passividade, com sérias dificuldades para expressar sentimentos de ódio.7 Eram crianças esquivas e tendiam a afastarem-se dos relacionamentos pessoais, apresentando acentuada ansiedade de base. Os sintomas obsessivos foram constatados em quatro das oito crianças e adolescentes e sintomas fóbicos em duas, além da presença constante de sintomas depressivos em quase toda a amostra.
Nas décadas de 1960 e 70, novos estudos foram desenvolvidos nessa área, com um enfoque mais voltado para a evolução dos quadros de coréia: se persistiam seqüelas neurológicas residuais e se havia maior propensão ao aparecimento de transtornos psiquiátricos subseqüentes, nos indivíduos acometidos por tal enfermidade. Uma pesquisa publicada em 1965 examinou um grupo de indivíduos (n=40) 29 anos, em média, após terem sido internados por coréia de Sydenham em um hospital da cidade de Nova Iorque.8 Esses indivíduos foram selecionados aleatoriamente entre os 186 pacientes internados com essa afecção naquele hospital durante os anos de 1929 a 1941. Um grupo controle (n=60) incluiu indivíduos também selecionados de maneira aleatória entre todos os pacientes hospitalizados na mesma época, mas devido a outras doenças. Encontrou-se, no grupo de casos, um sexto deles com “psiconeuroses” (fobias, sintomas obsessivo-compulsivos, conversão e ansiedade) e dois terços com transtornos de personalidade, enquanto que no grupo controle observou-se a presença de transtornos de personalidade em apenas um quarto deles e “psiconeuroses” não foram encontradas.
Em 1989, Swedo e cols. evidenciou uma alta prevalência de sintomas obsessivo-compulsivos em um grupo de pacientes com coréia de Sydenham (n=23) quando comparados a controles com febre reumática sem coréia de Sydenham (n=14), além da presença de sintomas de ansiedade e depressão no grupo de coreicos.9 Mais recentemente, Swedo et al. (1993), estudando 11 crianças com coréia de Sydenham com idades entre quatro e 12 anos, identificou a presença de transtorno de ansiedade de separação em duas das 11 crianças e aparecimento ou piora de sintomas de déficit de atenção com hiperatividade em quatro das crianças avaliadas.10 Sintomas obsessivo-compulsivos apareceram em nove das 11 crianças durante o quadro coreico, sendo que quatro dessas preencheram critérios diagnósticos (DSM-III-R) para transtorno obsessivo-compulsivo. Elevada taxa de transtorno obsessivo-compulsivo (20%) também foi observada por Abbas, Khanna, Taly (1996) em 20 pacientes com coréia de Sydenham.11
No Brasil, em pesquisas realizadas na cidade de São Paulo, também foram observadas variadas alterações psíquicas nas crianças acometidas por coréia de Sydenham. Em um estudo onde se avaliaram de modo prospectivo 30 pacientes com coréia de Sydenham e 20 com febre reumática sem coréia, observou-se que em 70% dos coreicos houve uma deflagração de sintomas obsessivo-compulsivos no decorrer do quadro de coréia, sendo que no grupo de controles nenhum paciente desenvolveu tal sintomatologia.12 Um segundo estudo, tipo caso-controle, avaliou três grupos de pacientes: um com febre reumática e coréia (n=22), outro com febre reumática sem coréia (n=20) e um terceiro grupo formado por crianças sem doença imune mediada (n=20).13 Evidenciou-se no grupo de febre reumática com coréia de Sydenham uma freqüência aumentada de transtorno depressivo maior, de transtorno de tiques e de transtorno hiperativo com déficit de atenção, assim como uma maior presença de sintomas obsessivo-compulsivos nos grupos de febre reumática com coréia e sem coréia de Sydenham quando comparados ao terceiro grupo. Também na cidade de São Paulo, um estudo descritivo avaliou todas as crianças e adolescentes (n=12) com diagnóstico de coréia de Sydenham que procuraram tratamento no Ambulatório de Reumatologia Pediátrica da Universidade Federal de São Paulo, durante um período de doze meses consecutivos.14 Verificou-se, na vigência do quadro coreico, a presença de manifestações psicopatológicas em toda a amostra, predominando os sintomas de depressão e ansiedade. O transtorno psiquiátrico mais freqüente foi o de ansiedade de separação, que esteve presente em 33,3% dos indivíduos estudados.
Frente aos resultados das variadas pesquisas nessa área, é importante que o clínico esteja atento às manifestações psicopatológicas associadas à coréia de Sydenham, as quais podem levar a intenso sofrimento psíquico e ainda prejudicar o relacionamento interpessoal, o rendimento escolar e o envolvimento das crianças com as atividades habituais. Além disso, merece um cuidado especial a identificação tanto de transtornos psiquiátricos prévios como daqueles desenvolvidos na vigência da coréia que persistem após a remissão dessa, para que os pacientes recebam o devido encaminhamento.
*Artigo baseado em tese de mestrado (Morbidade psiquiátrica em pacientes com coréia de Sydenham: um estudo descritivo) apresentada à Unifesp/EPM em abril de 2000.
Referências
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