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Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM |
especial |
O psiquiatra na Internet: um paradoxo?
The psychiatrist in the Internet: a paradox?
Giovanni Torello
Departamento de Psiquiatria da Unifesp-EPM
Resumo Descritores |
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Abstract Keywords |
A internacionalização
da cultura
Acredito que se tivéssemos de escolher uma única palavra para
definir o início deste novo milênio a palavra seria “globalização”.
E a comunicação, com todos os seus múltiplos recursos,
será a base desse processo de mudança social, cultural, econômico
e até geográfico, ao que parece, irreversível.1
O computador é o instrumento último e concreto desse processo e a Internet o veículo através do qual ele atua, individual e coletivamente.
Foi fundamental, no campo da informação, a difusão do uso do computador pessoal, economicamente acessível, simples de ser usado e dotado de aplicativos amigáveis e cada vez mais poderosos. Num primeiro momento, possibilitou-nos a criação de bancos de dados maiores e mais complexos – porém mais fáceis de ser consultados – armazenando enormes quantidades de informações. Em seguida, surgiu a Internet, e sua difusão permitiu que, finalmente se realizasse uma verdadeira distribuição global da informação, acessível a praticamente todos, a custos relativamente baixos.2
Assim, pela primeira vez na história da humanidade, o homem deixa de ter como prioridade a aquisição, o armazenamento e a classificação das informações. O mais importante passa a ser a escolha e a filtragem das informações, baseando-se nas suas próprias exigências, e a classificação e seleção dos dados em meio à desmesurada quantidade agora disponível.
Dessa forma, um novo sentimento de angústia começa a se espalhar pela sociedade: como conseguir se orientar no imenso oceano das informações? Como distinguir, em meio ao turbilhão de noções superficiais, aquelas verdadeiramente importantes, sem se perder entre os milhares de atalhos?
Vê-se, portanto, que se passou rapidamente de um sentimento de onisciência e onipotência – derivado da infinita possibilidade de acúmulo e cruzamento de dados – para uma vivência angustiante de impotência, sob o risco de uma paralisia resultante do acúmulo desordenado e autoproduzido de informações de toda espécie.3
Essa dificuldade de seleção e discriminação acentua-se, ainda mais, devido ao particular momento histórico que estamos atravessando e representa, junto ao fenômeno da globalização, uma extraordinária aceleração cultural desnorteada.
As inovações determinam mudanças sociais e culturais tão rápidas que o indivíduo não consegue assimilar e, assim, provocam contínuos desequilíbrios. Não há tempo suficiente para uma homeostase, uma sedimentação cultural satisfatória, e logo vem uma inovação, uma nova atitude ou um modismo, que recoloca tudo em discussão. Tem-se, assim, um enfraquecimento ou mesmo uma perda das principais referências filosóficas, culturais, científicas e éticas, que ficam obsoletas antes mesmo de se estabelecerem em sua função precípua de guias para o indivíduo.3
Paralelamente, a difusão desordenada e descontrolada de todo o tipo de informação, falsa ou verdadeira, científica ou leiga, passível de ser provada através de evidências ou não, facilita o recrudescimento das crenças supersticiosas, das pseudoverdades, baseadas no sempre latente arquétipo mágico, místico e esotérico.
O surgimento
de uma nova realidade
A instituição acadêmica
e a universidade – parte emblemática dessa instituição
– também sofrem as conseqüências dessa crise e enfrentam sérias
dificuldades para caminhar pari passo com as inovações tecnológicas que
o uso da informática disseminou na sociedade.
A instituição acadêmica, apesar da sua estrutura rígida e centralizada (ou talvez principalmente por isso), sempre teve uma função fundamental na aquisição do conhecimento, propiciando uma sedimentação das inovações e facilitando, assim, sua assimilação pela sociedade. Através dessa função, sempre determinou aquilo que geralmente é definido como Cultura, com C maiúsculo. Enquanto criadora de paradigmas sociais, realizou um papel conservador e de equilíbrio. Entretanto, durante os últimos anos, a tradicional capacidade acadêmica de criar cultura baseada na mediação entre a novidade e a tradição foi fortemente abalada pela aceleração cultural e renovadora, já citada anteriormente. A instituição não mais cadenciou, através da sua sabedoria, o metabolismo da fermentação mais renovadora da sociedade, mas, freqüentemente, foi por ela atropelada. Definiu-se assim uma crise de identidade.3
Ao que parece, a avalanche de informações postas à disposição de todos, principalmente pela informática e pela Internet, tornou-se uma ameaça a uma hegemonia secular. Desencadeou-se um mal-estar generalizado dentro das instituições acadêmicas, que, num primeiro momento, reagiram defensivamente, com uma espécie de altivo desdém, tolerância e auto-suficiência; mas logo depois passaram, pouco a pouco, a considerar o novo instrumento como um meio necessário para a sua própria manutenção e sobrevivência.
A psiquiatria
e a Internet
A medicina como um todo, e a psiquiatria
como disciplina dessa, não fugiram ao lugar comum institucional e, gregárias
e fiéis ao resto da instituição acadêmica, acabaram
tendo que correr atrás do tempo perdido, nos últimos anos.
Conseqüentemente, não é por acaso que as primeiras e significativas presenças psiquiátricas na rede não tenham vindo de instituições acadêmicas e, na maior parte das vezes, nem indiretamente eram ligadas a elas. Surgiram, sim, de associações espontâneas, transversais às instituições e, na sua maioria, só começaram a ser incorporadas pelas universidades nos últimos tempos.4
Se fizermos uma rápida excursão pela Internet descobriremos, não sem uma certa surpresa, que a psiquiatria é, entre as especialidades médicas, uma das mais representadas na rede. Isso surpreende porque a psiquiatria é a mais humanista das especialidades médicas, a mais ligada aos sentimentos, ao subjetivo, às vivências emocionais. É por isso que os psiquiatras são, tradicionalmente, pouco afeitos à tecnologia, fazendo muito pouco uso dela se comparados a outros especialistas médicos.1
Não é raro encontrar colega que se vangloria de ainda escrever à caneta e de nem ao menos saber ligar um computador. Como explicar, então, essa quase paixão da psiquiatria pela Internet?5
Responder a essa pergunta não é fácil e não acredito que possa existir uma única resposta. Como quase sempre acontece dentro da psiquiatria, os motivos parecem ser vários, interligados de forma complexa e diferentes, caso a caso. Entretanto, podemos identificar alguns com características comuns e significativas. O principal, a meu ver, é o histórico interesse, por parte dos psiquiatras, pela comunicação. Interesse e necessidade, pois o nosso trabalho é baseado, essencialmente, na busca, na exploração e no entendimento da comunicação, em suas mais variadas expressões: verbal, corporal, artística e tantas quantas a criatividade humana seja capaz de conceber. E a Internet representa, por excelência, o novo paradigma da comunicação.
Claro que se podem citar outras razões que motivam o psiquiatra a estar tão presente na rede: o trabalho em equipes multidisciplinares, cada vez mais necessário em nossa especialidade; a necessidade de uma constante atualização, tão fundamental na medicina de hoje; o sentimento de solidão, inerente ao nosso trabalho clínico cotidiano, devido à relação assimétrica que estabelecemos com os nossos pacientes no consultório; e muitas outras.
A biblioteca
virtual e os novos bibliotecários
Costuma-se dizer que o conjunto dos textos,
dos artigos e das notícias encontrado na Internet constitui uma biblioteca
virtual. Porém, é necessário sublinhar que estão
ausentes, na Internet, algumas das funções fundamentais de uma
biblioteca tradicional, como a seleção dirigida dos textos, principalmente.
A atitude de uma comunidade frente a uma biblioteca universitária ou
mesmo pública é, na Internet, substituída pela assim chamada
navegação solitária. Porque quem guia o leitor não
é mais o bibliotecário, ou, em sentido amplo, a cultura acadêmico-universitária.
Na rede, os filtros culturais (entenda-se com isso, tanto os efeitos negativos
do filtro, no sentido de limitação e condicionamento como os positivos
de endereçamento e coordenação) são substituídos
por um mecanismo, um algoritmo, um robô que se chama “motor de busca”.
A ele são confiadas as possibilidades de escolha do usuário dentro
da imensa biblioteca virtual; nele se deposita a esperança de não
se submergir na desordenada avalanche de informações e a de que
algum resultado útil possa ser alcançado.3
As páginas que contém essa nova espécie de bibliotecários (motores de busca) estão proliferando na Internet e ganhando uma importância que foi rapidamente descoberta pelos investidores publicitários. São os chamados “portais”, que se enriquecem dia-a-dia com novas funções e mecanismos cada vez mais poderosos e sofisticados. Porém, é fácil de se perceber o imenso risco que a informação corre de se transformar num mero acúmulo de fragmentos e dados, assim como o da cultura perder, inevitavelmente, a sua organicidade, ter sua capacidade de criar conhecimento real substituída pelo enciclopédico e desordenado acúmulo de dados: a documentação substituindo o conhecimento.
Anorexia
e bulimia cultural
O fenômeno particular que acabamos
de descrever, isso é, o excesso de oferta frente à limitada capacidade
de assimilação, não é prerrogativa exclusiva do
universo da informação. Uma situação análoga
pode ser observada em um contexto aparentemente distante, o da alimentação.
De fato, nos últimos anos, o homem passou a vivenciar, pela primeira
vez na sua história, uma situação na qual a procura do
seu próprio alimento deixa de ser sua preocupação primária.
A questão passa a ser a dificuldade de se alimentar corretamente. Aqui,
o fenômeno se repete: a sofisticação na capacidade de produzir
e conservar os alimentos (anunciados e oferecidos, abundantemente, pelas multinacionais
alimentares) provoca a deterioração progressiva das antigas tradições
culinárias, causando uma verdadeira revolução. Os antigos
e saudáveis menus familiares são substituídos pelos modismos
e pelas indicações dietéticas pseudomédicas, provocando
um grande aumento na incidência de transtornos alimentares. Vemos, assim,
que é possível traçar um paralelo entre a bulimia, a anorexia
nervosa e o fenômeno chamado de “Internet addiction disease” ou, entre
nós, “dependência de Internet”, caracterizada pela patológica
incapacidade de controlar o impulso de estar e permanecer conectado à
rede, em detrimento das outras atividades cotidianas. Ou, ainda, com o fenômeno
contrário, caracterizado pela terminante recusa a se utilizar do meio
informático, causada pelo medo de se sentir inexoravelmente envolvido
pelo tumulto criado por opiniões diferentes e discordantes, certamente
ricas em conteúdo, porém angustiantes na sua anárquica
organização na rede.
Mas, além dos paralelismos ousados, fica clara a necessidade de se criarem novos instrumentos culturais e epistemológicos para se compreender a modalidade de uso da Internet. É preciso estudar-se melhor esse novo instrumento, aprofundar-se nos seus significados e nas suas contradições.
A psiquiatria pode ter um papel relevante nesse processo, já que possui os instrumentos e o material humano necessários para contribuir substancialmente a uma compreensão mais ampla do uso da Internet.
Referências
Correspondência:
Centro de Estudos do departamneto de
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Rua Dr. Bacelar, 334, Vila Clementino
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E-mail: giovanni@dialdata.com.br
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