UNIFESP

Psiquiatria na prática médica  

Órgão Oficial do

Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM

editorial

especial

atualização

agenda

instrução aos autores

equipe

outras edições

Tratamento da dependência da nicotina
O uso de ansiolíticos e antidepressivos em cardiologia
Delirium no paciente idoso

Abordagem diagnóstica na neurocirticercose
Aspectos psicopatológicos relacionados à coréia de Sydenham
Uso de psicoestimulantes no Brasil: um problema ainda sem solução 

 

Neurologia

O diagnóstico de neurocisticercose (NC) baseia-se na história epidemiológica do paciente, associada a quadro neurológico de crises convulsivas, cefaléia, síndrome de hipertensão intracraniana e/ou alterações psiquiátricas. Todo paciente com esse perfil deve realizar uma tomografia computadorizada (TC) de crânio e testes sorológicos no liquor cefalorraquidiano (LCR), com posterior tratamento clinico-etiológico e/ou sintomático.


Abordagem diagnóstica na neurocirticercose
Antônio SA Filho, Samira LA Pereira e Patrícia L Santos

   


Antônio de Souza Andrade Filho

 

EAntônio de Souza Andrade Filho
Professor da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública e Departamento de Neuropsiquiatria da Faculdade de Medicina da UFBA

 

Correspondência
Antônio de Souza Andrade Filho
Rua Deocleciano Barreto,10, Chame-Chame
40150-4000 Salvador, Bahia
Tel.: (0xx71) 332-9999/2333
E-mail:
fundacao@svn. com.br/ andradea@svn.com.br

 

A cisticercose é uma parasitose típica de regiões em desenvolvimento, associada a precárias condições de higiene e saneamento básico. Encontra-se difundida mundialmente, alcançando extrema importância no perfil socioeconômico das regiões acometidas, uma vez que 75% dos pacientes apresentam-se em plena idade produtiva.1 No Brasil, a maior prevalência encontra-se nos Estados do Paraná, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, sendo mais comum em adultos, entre a terceira e quarta décadas de vida, não apresentando predileção por um determinado sexo ou raça.1

O cisticerco migra para o sistema nervoso central (SNC) e atinge pequenos vasos sangüíneos entre a substância cinzenta e a branca, onde se desenvolve num cisto de 3-15 mm de diâmetro.2 Os cistos podem se alojar em diversos locais no SNC: na parênquima, na parede do sistema ventricular ou nas meninges e no espaço subaracnóideo.3

Dois mecanismos principais são responsáveis pela ação patogênica do parasita no SNC: (1) o efeito mecânico proporcional ao volume e à localização da vesícula e (2) o efeito tóxico, perifocal e à distância.3 A NC é uma doença pleomórfica em que o SNC é afetado pela presença do parasito propriamente dito, pela reação inflamatória, pela fibrose residual, pelo granuloma e pela calcificação. O SNC reage com a formação de um tecido inflamatório, o que causa fenômenos degenerativos nos neurônios circunjacentes, com desmielinização da substância branca, proliferação glial e infiltração de células.4

É importante avaliar a atividade da doença, pois testes imunodiagnósticos e decisões terapêuticas divergirão, a depender da viabilidade do parasita (doença em atividade) ou da infestação prévia que foi eliminada pela resposta imune do hospedeiro, restando apenas déficits neurológicos secundários à formação dos granulomas e da fibrose residual (doença inativa).5 Dentre as formas ativas da NC, destacam-se a aracnoidite, a hidrocefalia secundária à inflamação meníngea, os cistos parenquimatosos e subaracnóides, a encefalite, a ventriculite e o infarto cerebral secundário à vasculite, enquanto as formas inativas incluem os granulomas parenquimatosos calcificados e a hidrocefalia resultante de fibrose meníngea.5

Os mecanismos responsáveis pelas manifestações clínicas dependerão de fatores como a localização e o número de parasitas, a condição do hospedeiro, a resposta inflamatória induzida, a circulação liquórica e a seqüela de outras infecções.4,5 Tais mecanismos determinarão o quadro clínico de um paciente com NC, sendo que esse pode variar e se apresenta das seguintes formas:3-5

  1. Assintomático. Representa o menor número de indivíduos, pois é demonstrado que manifestações neurológicas ocorrem aproximadamente entre 60% e 92% das infestações.4,5
  2. NC Parenquimatosa. É a forma sintomática mais freqüente, e os sintomas podem se apresentar como epilepsia, manifestações psíquicas, déficits focais e encefalite. A epilepsia é a síndrome mais freqüente da NC2,4, e esse é o principal causador de seu início na idade adulta nas regiões em desenvolvimento, sendo responsável por 50% dos casos.1,2,4 A patogênese da crise epiléptica é variada e o principal fator epileptogênico é a gliose perilesional reacional à morte do parasita ou ao parasita morto.4 É evidenciado ainda que a prevalência da NC em serviços psiquiátricos não é desprezível, sendo estimada entre 2,9% e 3,3% dos pacientes encaminhados ao serviço de neuropsiquiatria.6 A manifestação mais citada é a demência, presente em cerca de 8,74%.6 Os déficits focais, resultantes da compressão cerebral, da destruição ou da irritação pelos cistos, podem ser os mais variados possíveis e se apresentam por sinais piramidais, ataxia cerebelar, movimentos involuntários, déficits sensoriais, entre outros.
  3. NC Subaracnóide. A apresentação mais comum é a síndrome de hipertensão intracraniana (SHIC) na presença de hidrocefalia obstrutiva. Pacientes com C. racemosus presentes nas meninges tendem a desenvolver meningite crônica.3,4
  4. NC intraventricular. Também se acompanha de SHIC por hidrocefalia obstrutiva resultante da obstrução do LCR por ventriculite ou por grandes cistos ventriculares, particularmente no IV ventrículo, o que produz efeitos de válvula.4

Outras formas de apresentação são mais raras, ou pelo menos, não são tão diagnosticadas:

  1. NC medular
  2. Cisticercose muscular
  3. Formas mistas

Alguns autores4 evidenciaram uma freqüência de aproximadamente 60% de epilepsia, 25% de SHIC, 25% de meningite crônica, 15% de manifestações psiquiátricas, 10% de déficits focais e 10% de assintomáticos. É importante ressaltar que o método de seleção dos pacientes influencia nas freqüências obtidas, a depender do local de acompanhamento. Nesta experiência os dados foram semelhantes: a epilepsia representou, também, a forma clínica mais importante com 80,9% dos casos, seguida pela SHIC em 10,5% e pela forma psiquiátrica em 3,6%.3,4,6 Além disso, 81,8% dos pacientes tinham exame neurológico normal e, dentre as alterações encontradas, a mais comum foi a hemiparesia isolada em 9,1%.

Após a história clínica de um paciente de área endêmica, com quadro de crises convulsivas e exame neurológico normal, a tomografia computadorizada axial (TAC) é o primeiro exame para rastrear e confirmar a doença (permitindo avaliar extensão, local, grau de comprometimento ntracraniano, formas não-granulomatosas e calcificações), além de indicar a evolução e a melhor terapêutica para a mesma. Os padrões na TAC dependem do número, da localização e do tamanho das lesões, dos estágios de desenvolvimento da larva e da resposta. Tais variações radiológicas têm boa correlação com o quadro clínico do paciente, conforme descrito na Tabela.

Tabela - Correlações clínico-tomográficas no paciente com NC

Fase evolutiva

Apresentação radiológica

Apresentação clínica

I) Um ou múltiplos cistos jovens viáveis, sem estimular resposta inflamatória ou com reação inflamatória mínima.

Cistos de tamanhos diversos, com pouca ou nenhuma captação de contraste.
Ocasionalmente visualiza-se o escólex.

Ö SHIC
Ö Déficit neurológico
Ö Hemiparesia

II) Cisto circundado por edema e intensa reação inflamatória, formando o granuloma.

Cistos de baixa densidade, com captação de contraste evidenciando edema perilesional.

Ö SHIC
Ö Crise convulsiva +
exame neurológica normal
Ö Manifestações psíquicas
Ö Hemiplegia pura

III) Cisto mal visualizado com pouca reação inflamatória e reabsorção do edema representando degeneração e involução do(s) cisticerco (s).

Áreas com evidência de reabsorção de edema, pouca captação de contraste.

Ö Hemiparesia
Ö Crises convulsivas +
exame neurológico normal

V) Granuloma calcificado, com resolução final da lesão parasitária, significando a permanência da sua seqüela.

Áreas arredondadas calcificadas, sem captação de contraste.

Ö Crises convulsivas +
exame neurológico normal

 

As imagens radiológicas da NC não são patognomônicas e o diagnóstico diferencial deve ser feito com cistos aracnóides e astrocitoma cístico, granulomas micóticos, tuberculoma, hidatidoses, abscessos parenquimatosos e metástases, toxoplasmose e tuberculose calcificada.

A ressonância nuclear magnética (RNM) também é útil, com a vantagem de não utilizar radiação ionizante ou contraste. Permite boa visualização de cistos intraventriculares no tronco, cisterna pré-pontina e leptomeninges, lesão na base do cérebro e lesões intramedulares espinhais. No entanto, é inferior à TAC na verificação de calcificações. Os achados da RNM mostram, na fase inicial, sinal de baixa intensidade ou da mesma intensidade do LCR para a maioria dos cistos intraventriculares e parenquimatosos viáveis. A fase inflamatória com edema e degeneração é representada pelo sinal de alta intensidade pericística circunjacente às lesões.

Na abordagem diagnóstica da NC, o estudo do soro e do LCR tem utilidade ímpar na detecção de antígenos, anticorpos e complexo antígeno-anticorpo. Os testes de detecção de antígeno têm oferecido diagnóstico mais definitivo. Os testes sorológicos não são usados devido à baixa reprodutibilidade, à pobre estabilidade antigênica no soro e à reação cruzada, originando resultados controversos e não confiáveis.1,3,4

O estudo do LCR mostra resultados mais fidedignos. Os falso-positivos ocorrem em indivíduos de área endêmica ou devido à reação cruzada, principalmente com a neurossífilis. Os falso-negativos resultam da falha de detecção de antígenos no LCR. Os testes imunológicos são mais sensíveis na NC meníngea e no LCR inflamatório do que na NC parenquimatosa e no LCR não-inflamatório. A negatividade do antígeno não afasta o diagnóstico.

As técnicas imunológicas usadas para o diagnóstico de NC são: hemaglutinação indireta (HGI), fixação de complemento (FC), imunofluorescência indireta (IFI), Elisa e Imunoblot.

  1. HGI: é de grande valor diagnóstico, mas pode haver reação cruzada com esquistossomose, hidatidose, colagenose e cirrose hepática. No entanto, títulos superiores a 1:256 são altamente sugestivos de NC e nessas concentrações não ocorre reação cruzada com parasitoses ou doenças degenerativas.
  2. FC (fixação de complemento ou reação de Weinberg): é uma boa técnica para avaliação de LCR, porém errática no soro, sendo o método de detecção de IgM mais sensível e específico que de IgG. A sensibilidade é muito maior em casos de LCR inflamatório. A sua especificidade é boa, mas pode haver reação cruzada com neurossífilis, TB meníngea e, além disso, situações como neoplasias, abscessos do SNC e meningites crônicas podem cursar com FC inespecífica, fraca ou variável. O diagnóstico de NC deve ser firmado apenas se a reação for fortemente positiva.  
  3. RIFI (reação de imunofluorescência indireta): é uma técnica com sensibilidade de cerca de 88,1% e especificidade de 87,1%, com títulos numa variação de 1:1 a 1:16. As reações inespecíficas falso-positivas podem ocorrer com outras doenças, como acidente vascular hemorrágico ou síndrome de imunodeficiência adquirida, porém, nesses casos, o LCR terá características peculiares e não indicará NC.
  4. Elisa: esse teste é o de melhor sensibilidade e especificidade. Em relação à detecção de antígenos, podem ser utilizadas técnicas com anticorpos IgM e IgG, sendo o IgM mais sensível e específico. Os falso-positivos podem ocorrer por reação cruzada com equinococus, porém a sensibilidade depende inicialmente do tipo de antígeno usado e do paciente testado, enquanto os falso-negativos são mais freqüentes em NC parenquimatosa.

No LCR:

  1. Imunoblot: teste bastante útil na detecção de antígeno, sendo mais sensível em pacientes com lesões múltiplas em atividade do que naqueles com cistos calcificados únicos ou múltiplos. Estudos mostraram que a análise do soro é mais sensível que a do LCR, com sensibilidade de 100%, indicando que, quando o Imunoblot for empregado, a análise do LCR é desnecessária.

O diagnóstico é confirmado num paciente com o perfil clínico-tomográfico descrito acima, associado a estudo do LCR compatíveis com NC (Figura).

Algoritmo diagnóstico na neurocisticercose

Figura - Algoritmo diagnóstico na neurocisticercose

Com a confirmação diagnóstica de NC, o tratamento deve ser efetuado na dependência dos sintomas e a fase na tomografia computadorizada de crânio. Pacientes com TC demonstrando fases I, II ou III devem receber terapia anticisticercótica com albendazol ou praziquantel, associada à corticoterapia. Aqueles com fase IV na TC não necessitam da terapia anti-helmíntica, e devem ser acompanhados com o tratamento sintomático, baseado principalmente no uso de anticonvulsivantes.7-10

Referências

  1. Andrade-Filho AS, Souza APQU, Souza YMA. Neurocisticercose. Revisão. Parte I. RBNP 1997;1(3):125-30.
  2. Andrade-Filho AS, Souza APQU, Souza YMA. Neurocisticercose: diagnóstico. Revisão. Parte II. RBNP 1998;2(1):9-12.
  3. Andrade-Filho AS. Neurocisticercose aspectos clínicos, epidemiológicos e diagnósticos: estudo prospectivo de 157 pacientes na região Nordeste, Bahia [dissertação]. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro; 1998.
  4. Canelas HM. Neurocisticercose: incidência, diagnóstico e formas clínicas. Arq Neuropsiquiatr 1962;20:1.
  5. Sotelo S, Guerreiro V, Rubio F. Neurocysticercosis; a new classification based on active and inactive forms. Arch Neurol 1998;45:1130-3.
  6. Andrade-Filho AS, Figuerôa FLS, Souza YMA, Souza APQU, Pereira SLA, Santos PL, et al. Clinical correlations of 220 patients with neurocysticercosis, Bahia, Brazil. Proceedings of the XI World Congress of Psychiatry. August 6-11, 1999. Hamburg, Alemanha.
  7. Andrade-Filho AS, Galdino GS, Mattos GR, Moreno OA, Freitas MS, Matos GR, et al. Neurocisticercose forma ventricular e subaracnóideana tratada com albendazol: relato de 5 casos. Anais do XV Congresso Brasileiro de Neurologia. 15 Outubro, 1992. Porto Alegre (RS), Brasil.
  8. Andrade-Filho AS, Galdino GS, Mattos GR, Moreno AO, Ancilon M, Rolemberg-Filho JC. Albendazol em neurocisticercose: relato de 5 casos. Rev Bras Neurol 1991;27(3):115-20.
  9. Andrade-Filho AS, Galdino GS, Mattos GR, Moreno AO, Ancilon M, Rolemberg-Filho JC. Albendazole vs neurocysticercosis. Resumés du Congres et Neurologie Tropicale. 26-28 1991; Limoges, France. p.123.
  10. Andrade-Filho AS, Souza APQU, Souza YMA. Neurocisticercose: tratamento. Revisão. Parte III. RBNP 1998;2(2):45-9.

capa

arrow22c.giftopo

 Última atualização: