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Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM |
artigos originais |
O ensino da psicanálise na graduação médica*
Psychoanalysis teaching at medical graduation
Theodor Lowenkron
Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Sociedade
Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro
Resumo Objetivo Métodos Resultados
Conclusões
Descritores
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Abstract Objective Methods Results Conclusion Keywords |
Introdução
O objetivo deste trabalho é contribuir para o debate sobre o ensino da psicanálise na universidade e, particularmente, abordar o ensino, em nível de graduação, sobre psicanálise.
Será focalizado, nesta exposição, um aspecto desse ensino, apresentando o relato de uma experiência - em desenvolvimento na disciplina de Psiquiatria e Saúde Mental da Faculdade de Medicina da UFRJ - de emprego do método de ensino prático de observação de entrevistas por meio do espelho unidirecional, com o propósito de considerar a pertinência de sua aplicação ao ensino da psicanálise em nível de graduação.
Os fundamentos da utilização desse método de ensino da psicanálise encontram-se no pensamento freudiano concernente à relação entre psicanálise e universidade, e na reflexão desenvolvida por Laplanche sobre a problemática de como "ensinar a psicanálise na universidade".
Em "Freud, Psicanálise e Universidade",1 apresentado no XVI Congresso Brasileiro de Psicanálise, faz-se um estudo das idéias de Freud sobre os encontros e desencontros desse relacionamento. Na ocasião daquele Congresso, houve um profícuo intercâmbio que resultou na proposta de continuação do debate, originando a programação desse Seminário sobre Psiquiatria e Psicanálise Hoje.
Freud e a universidade
Da reduzida bibliografia sobre a questão psicanálise e universidade, o artigo intitulado "Deve-se ensinar a psicanálise na universidade?" constitui-se na principal fonte das idéias desenvolvidas por Freud2 sobre o tema. Mesmo sendo restritos os trabalhos que tratam especificamente desse intercâmbio entre a psicanálise e a academia, procurou-se fazer uma indagação cuidadosa sobre o desenvolvimento das idéias de Freud2-6 a respeito desse diálogo, tanto em sua obra quanto na de autores7-9 que comentam os posicionamentos freudianos sobre a relação entre universidade e psicanálise.
Freud, simultaneamente, questionou e valorizou a aproximação da psicanálise com a universidade, reconhecendo a importância da utilização do conhecimento psicanalítico na formação dos profissionais da saúde e do saber das ciências humanas, atribuindo, no entanto, às instituições autônomas, a tarefa especializada de formação dos psicanalistas.
Mesmo sofrendo resistências do meio universitário às suas descobertas, Freud não deixou de tentar manter um relacionamento com a academia, sendo Livre Docente e ocupando a posição de Professor Assistente na Universidade de Viena, onde, durante trinta anos, realizou conferências, procurando divulgar as idéias psicanalíticas. Ferenczi, por sua vez, foi o primeiro a conquistar uma cátedra de psicanálise na universidade, motivando Freud a escrever o artigo no qual se dedica a explicitar suas idéias sobre a possibilidade do ensino da psicanálise na universidade.
Freud propôs o ensino da psicanálise nas escolas médicas em dois níveis: um curso elementar para os estudantes de medicina e um outro especializado para os médicos psiquiatras. Nas escolas das ciências humanas, propôs a inclusão do ensino da psicanálise, visando contribuir para a criação de uma união mais estreita entre a ciência médica e os ramos do saber que correspondem ao âmbito da filosofia.
A docência de psicanálise na universidade, segundo Freud, seria exercida predominantemente por aulas teórico-expositivas e, em casos especiais, poderiam ser realizados experimentos ou demonstração prática. Com relação à prática de pesquisa, recomendava, principalmente, que existissem consultórios para prover o material clínico de pacientes com transtorno neurótico.
Resistências e hiato no diálogo
As resistências sofridas por Freud, no espaço universitário, após persistentes tentativas de dialogar com seus pares na academia, decepcionaram-no, refletindo-se na sua proposta de formação dos psicanalistas e no modo como empreendeu o desenvolvimento da ciência psicanalítica. O conhecimento psicanalítico prescindia da universidade para o seu desenvolvimento, já que o terreno para as suas investigações era a relação bipessoal. Entretanto, a reflexão sobre as descobertas de Freud poderia ter sido enriquecida, desde o início, por meio do diálogo com outros saberes na academia, caso a universidade não tivesse adiado a sua participação, deixando, desde Ferenczi até autores contemporâneos como Jean Laplanche, um grande hiato nas trocas da psicanálise com a universidade.
Retomada do diálogo com Laplanche
O trabalho desenvolvido por Laplanche na academia é bastante fecundo. Seus seminários públicos sobre a teoria psicanalítica, realizados em estilo denominado por ele próprio de magistral, caracterizavam-se pela aplicação de um rigoroso método interpretativo dos problemas levantados no percurso de certos eixos principais da teoria psicanalítica. O resultado do trabalho desenvolvido por Laplanche, durante os cursos ministrados na Unidade de Ensino e Pesquisa da Universidade Paris VII, refletindo o seu propósito de fazer ranger determinadas articulações e de derivar certos conceitos, encontra-se organizado em cinco volumes sob o título de "Problemáticas".
O primeiro seminário da "Problemática I"10 inicia com a objeção de princípio à proposição restrita de um ensino da psicanálise, para, em seguida, defender a proposição de um ensino psicanalítico da psicanálise. Contudo, é na "Problemática IV"8 que o autor alcança uma reflexão mais rica e sistemática sobre o sentido do que pode significar "ensinar a psicanálise na universidade", por meio da problematização dos termos "ensinar", "ensinar a psicanálise" e "universidade".
Considerando o primeiro termo - "ensinar" -, Laplanche questiona sobre o que pode ser um ensino digno de ser assim designado. Um ensino digno de tal nome nas ciências humanas não pode ser outra coisa senão o correlativo de uma pesquisa. Pode ser o relato, a apresentação formal de uma pesquisa em curso ou pode ser o próprio lugar de sua elaboração. A atividade de ensino de Laplanche é o ponto de cristalização de sua pesquisa, fecundada por sua experiência cotidiana de análise.
O segundo termo - "ensinar a psicanálise" -, remete ao problema da oposição, nem tão nova, entre o "saber" e a "ver dade", entendendo-se a psicanálise como o lugar da verdade, ao passo que o saber seria um modo de se defender, de imobilizar essa verdade. Essa oposição encontra sua origem em Sócrates, cujo procedimento de busca da verdade cumpria a exigência metodológica de nada saber para chegar a uma certa verdade. No entanto, argumenta Laplanche, se, por um lado, toda verdade pode imobilizar-se em saber, por outro lado, subsiste o fato de que não pode haver surgimento da verdade sem a base inicial de um certo saber. A propósito, Lacan alertou para o fato de que essa fórmula poderia ser profundamente desvirtuada caso fosse utilizada como um álibi para justificar a pura e simples ignorância. O problema que se coloca para o ensino de psicanálise é o de encontrar um modo pelo qual possa obedecer a uma exigência fundamental, qual seja, a de se desenvolver em consonância com o seu objeto, isto é, o inconsciente.
O terceiro termo - "universidade" - encontra, segundo Laplanche, a objeção de que o entendimento da fórmula "ensinar a psicanálise na universidade" decompõe-se em dois aspectos: um individual e o outro social ou político. Em relação aos indivíduos, ensinar a psicanálise na universidade choca-se, por definição, com a não-especialização dos alunos e, de um modo mais preciso, no que se refere à análise, com o fato de não ser exigido dos estudantes que sejam analistas ou analisandos. O que significa e quais as conseqüências de falar de análise aos não necessariamente analisados?
Para Laplanche,8 ser analisado não é condição necessária e muito menos pode ser uma exigência feita ao aluno para o ensino da psicanálise na universidade. A seu ver, requerer uma exclusividade desse ensino para os que trazem uma bagagem de análise pessoal revela, antes de mais nada, uma descrença na receptividade do inconsciente à psicanálise. Afirma que, embora a análise esteja localizada num espaço e num tempo - o espaço de tratamento e o tempo de sua duração - ela se prolonga em auto-análise e, mais ainda, é precedida por uma auto-análise. De um ponto de vista mais geral, a análise refere-se a algo acessível em cada um e ultrapassa os limites do tratamento analítico. Laplanche assume posicionamento favorável à expansão do campo de transmissão da psicanálise, ao entender que existe análise fora do espaço mais restrito da prática analítica. Assim sustenta que existe análise para todos "os que estiverem, os que estão ou os que vão estar em análise, mesmo que, em vida, tenham jamais se estendido num divã". E declara de modo peremptório: "renunciar a ensinar a análise a não-analistas é renunciar a inventar, a reinventar incessantemente um modo de ensino que seja permeável à inspiração da análise, permeável ao inconsciente."
Além disso, a recusa em falar de análise na universidade, essa considerada agora como instituição, pode assumir uma outra forma, a de objeção política, que poderia ser assim formulada: ao se ensinar psicanálise na universidade, não se estará participando de uma institucionalização da psicanálise? O que interessa a Laplanche nessa objeção é o problema dadefinição e da manutenção de uma política de análise, ou seja, na possibilidade de a análise manter-se numa certa não-institucionalidade, sem cair, entretanto, no esoterismo.
Segundo Laplanche,8 a instituição universitária fortemente estruturada, muito integrada socialmente, estritamente finalizada do ponto de vista de seus objetivos, não deixaria lugar para um ensino da análise digno desse nome. Seu entendimento é no sentido de que, enquanto durar essa relação e desde que cada analista docente faça regularmente uma avaliação de sua participação no trabalho universitário (isso para não correr o risco de perder a alma), a análise deve tirar todo o proveito que puder dessa relação de forças, que faz com que a universidade esteja aberta a todas as correntes. Por certo, não se tome essa apologia do não-finalizado, do não-rentável, por uma tomada de posição a favor de "qualquer coisa"; não é isso o que se pretende dizer, em absoluto: a abertura a todos os ventos, a todas as correntes, não significa o arbitrário.
Psicanálise e graduação médica
A questão mais específica que foi proposta nesse Seminário diz respeito às formas de aproximação da psicanálise e da universidade, por meio do ensino, em nível de graduação e, segundo minha experiência, em curso de medicina.
Há consenso quanto à questão de que, no Brasil, os objetivos prioritários dos cursos de graduação em Medicina devem ser orientados para a formação de médicos generalistas capacitados para atender às necessidades de saúde da maioria da população. Os currículos devem, pois, ser ajustados no sentido de relacionar tal necessidade com o conteúdo e a metodologia de ensino.
A Declaração de Edimburgo, fruto da Conferência Mundial de Educação, tratando dos desafios da educação médica nos anos 90, inicia declarando que o objetivo da educação médica é formar profissionais comprometidos com a missão de promover a saúde de todas as pessoas. A dificuldade de alcance desse objetivo, em muitos lugares, apesar do enorme progresso das ciências biomédicas neste século, motivou a recomendação de que cada paciente deve poder encontrar, no médico, o ouvinte atento, o observador cuidadoso, o interlocutor sensível e o clínico competente.11
O suposto básico da experiência psicanalítica é que o inconsciente "fala", ou seja, os sintomas, mesmo quando infiltram o campo da medicina interna, podem ter um outro sentido, que remeta ao psíquico, um idioma que a princípio pode não ser compreendido, mas que é possível de ser decifrado: o interlocutor capaz de escuta analítica cria as condições de transformação desses sintomas em palavras, expressão de conflito psíquico, ampliando a inteligibilidade da comunicação.
Tornar-se um médico capaz de uma escuta atenta e de uma observação sensível, implica reconhecer, para além do corpo biológico do paciente, aquilo que por esse é falado e sofrido. A aquisição de tal habilidade envolve, além de conhecimento teórico, o desenvolvimento de atitudes adequadas a esse fim.
Uma metodologia de ensino relacionada à parte prática do curso, que pode favorecer a aquisição dessas habilidades, estimulando o desenvolvimento das atitudes adequadas, ainda que dentro do escopo limitado de um semestre curricular, é a que caracteriza a observação direta de entrevistas de pacientes selecionados tal como a que se desenvolve na UFRJ. Essa prática de ensino realiza-se, rigorosamente, mediante a permissão, pelos pacientes, de que os estudantes possam observar, por meio do espelho unidirecional, a sala onde ocorre a consulta terapêutica ou o atendimento psicanalítico breve. Tal prática constitui-se num recurso alternativo que possibilita ao estudante o reconhecimento dos modos de manifestação próprios do inconsciente e a aprendizagem das peculiaridades da escuta do psicanalista.
Tal procedimento de ensino serve ao propósito de despertar os futuros médicos para a existência e a relevância de fenômenos que têm expressão na linguagem verbal e corporal dos pacientes, mas que, freqüentemente, não são considerados e nem acolhidos adequadamente no conjunto dos elementos que constituem a prática clínica. Com o objetivo de esclarecer o procedimento técnico adotado e de introduzir os conceitos psicanalíticos fundamentais que dão sustentação à prática, as entrevistas devem ser seguidas de discussão com o grupo que assiste ao atendimento.
O procedimento proposto, de demonstração ao vivo, não é suficiente para habilitar o estudante ou o profissional de saúde ao exercício da psicoterapia, mas, além de servir-lhe de estímulo, poderá ajudá-lo a vencer algumas objeções baseadas em idéias pré-concebidas sobre a psicanálise. O estudo introdutório de teoria psicanalítica conjugada à supervisão de casos é indispensável à sedimentação da experiência do futuro médico. A análise pessoal não deve ser requisito obrigatório, pois só se justifica em função de demanda fundamentalmente pessoal.
A prática de observação de entrevistas por meio de espelho unidirecional caracteriza-se como recurso didático que, aplicado ao ensino da graduação, deve ser concebido como um primeiro e importante passo no processo de capacitação e educação continuada que o estudante da área da saúde poderá buscar ao longo do seu futuro desempenho profissional.
Conclusão
O desenvolvimento dessa atividade de ensino, a princípio, como parte da pesquisa de campo de tese de doutoramento - realizada no Instituto de Psiquiatria da UFRJ, posteriormente adaptada para publicação em livro12 - e, atualmente, realizando-se como prática de ensino na disciplina de Psiquiatria e Saúde Mental da UFRJ, está em concordância com a con cepção de Laplanche9 sobre a exigência de que um ensino digno de tal nome nas ciências humanas, não poder ser outra coisa senão o correlativo de uma pesquisa.
Essa prática de ensino também está em conformidade com as idéias defendidas por Freud,4 no sentido de que a docência de psicanálise na universidade, em casos especiais, poderia ser exercida pela realização de experimentos ou de demonstração prática.
Essa atividade didática está sendo pensada e utilizada, em ensino de graduação na UFRJ, como um instrumento que busca, de um modo vivo, afetar o estudante de medicina com a descoberta da dimensão inconsciente dos fenômenos psíquicos.
* Relatório para o Seminário Psiquiatria e Psicanálise Hoje do XV Congresso Brasileiro ed Psiquiatria. Brasília, Outubro de 1997
Referências
Correspondência :
Theodor Lowenkron
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Volume 33, número 3 |
jul · set 2000 |
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