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Psiquiatria na prática médica  

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A religiosidade e suas interfaces com a medicina, a psicologia e a educação

Religiosity and its interfaces with medicine, psychology, and education

Paulo LR Sousa, Ieda A Tillmann, Cristina L Horta e Flávio M de Oliveira
Universidade Católica de Pelotas, Rio Grande do Sul, RS, Brasil

Fonte de financiamento: Estudo financiado pelo NUPPLAC, Universidade Católica de Pelotas, Rio Grande do Sul.

Resumo
A dissociação metodológico-ideológica, que durante séculos separou a ciência da religião, sofreu um considerável golpe em sua tenacidade, com uma visível tendência a atenuar-se nesse final de século. Igreja e ciência, de parte a parte, dedicam-se a uma decidida aproximação. A medicina, em primeiro termo, seguida pela psicologia e mais recentemente pela educação são ciências que se dedicaram a fazer interfaces e a buscar tentativas intertransdisciplinares, com a religiosidade em variadas formas de expressão. As conseqüências sobre a saúde, seja de caráter terapêutico ou no sentido preventivo, têm mostrado uma correlação entre a presença da religiosidade e uma variada gama de situações clínicas, como a menor propensão à delinqüência, ao abuso de substâncias, às separações matrimoniais e às condutas suicidas. No entanto, estudos que correlacionam a religiosidade e os achados neurocientíficos têm, consistentemente, demonstrado a associação entre modificações neuroelétricas e neuroquímicas, além da atividade religiosa. De modo análogo, mas de forma ainda incipiente, a influência da religiosidade sobre os processos educacionais é apontada em diferentes estudos. A conclusão sobre essa visão interdisciplinar, entretanto, aponta ainda a existência de resultados díspares – indicativos da necessidade de aprofundar os estudos – para melhorar a qualidade das evidências.

Descritores

Religiosidade. Interdisciplina. Medicina. Psicologia. Educação.

 

Abstract
For many centuries methodological and ideological issues have separated religion and science. It is clearly evident an ongoing shift in the political standings of the Church and Sciences, with a mutual approximation, and a trend to creating interfaces and interdisciplinary dialogue between religious and scientific thoughts. At first Medicine, followed by Psychology and more recently by Educational Sciences have been searching for interdisciplinary experiences with religious issues. As a result, recent studies have been showing correlation between religiosity and a variety of clinical situations, such as a decline in delinquency, substance abuse, divorce and suicidal behaviors. On the other side, the neuroscience is now able to demonstrate the existence of a correlation between different religious states and neuroelectrical and neurochemical conditions. In the educational field, it was seen positive correlation between religiosity and educational performance—though most of these studies had methodological problems. Even though there is still a disparity of results regarding the interfaces of these three scientific areas, it is suggested that further studies may reveal the required scientific evidence to support developments in the field.

Keywords

Religiosity. Interdisciplinarity. Medicine. Psychology. Education.

 

Introdução

Se durante séculos religião e ciência ocuparam domínios completamente separados, essa virada de milênio reservou uma reviravolta no assunto. De parte a parte, ciência e religião vêm mostrando um mútuo interesse de aproximação. João Paulo II1 marcou essa tendência na encíclica Fides et Rati (1998), em que afirma que “a fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”.

Em sintonia com a abertura da igreja, numerosos cientistas manifestam não somente o desejo de corresponder ao apelo aproximativo, mas, concretamente, realizam investigações científicas sobre as variadas circunstâncias da religião na vida dos homens. Assim, atualmente é comum o desenvolvimento de pesquisas sobre a temática, tanto nos veículos especializados quanto nos meios variados da mídia.

É provável que as manifestações religiosas de Einstein, primeiramente expressas em 1950,2 sejam, de parte do mundo científico da modernidade, um dos primeiros passos facilitadores dessa aproximação. Logo, Einstein referiu que um cientista podia, efetivamente, ser um homem religioso. Ele, por exemplo, acreditava em uma perspectiva “cósmica, não antropomórfica”, de Deus. Apontava que o antropomorfismo era uma necessidade do homem comum para compreender a divindade. O cientista iria por outro caminho, mais abstrato e menos sincrético. Mas ambos (sujeito da multidão e sujeito de ciência) podiam ver-se irmanados ante a circunstância divina.

Parece que essa abertura posicionada por Einstein funcionou como um ponto de ruptura do estereótipo que incompatibilizava ciência e religiosidade no mundo moderno, embora, vale frisar, é bem defensável a idéia de que a ciência, para nascer, precisou se afastar daquilo que o pensamento religioso guardava de dogmatismo, para poder se constituir como domínio disciplinar dentro de um outro paradigma.

A partir de Einstein, reduziram-se, um a um, os impedimentos de cercania para ciência e religião, a ponto de João Paulo II afirmar que religião sem ciência não é boa religião, bem como ciência sem religião não é boa ciência. Uma posição convergente com a do sumo pontífice foi, recentemente, tomada pela Organização Mundial da Saúde3 (1998), ao ter acrescentado a dimensão de bem-estar espiritual ao seu conhecido conceito multidisciplinar de saúde, que, como se sabe, só entendia uma condição de saúde se existisse a presença de bem-estar nas dimensões físicas, psíquicas e sociais. A valorização acrescentada, considerando o lado espiritual/religioso, é, sem dúvida, o selo decisivo e universalizado do entrelaçamento de ciência e religião.

O presente estudo aborda algumas questões decorrentes das interfaces entre alguns ramos da ciência e religião: medicina e religiosidade; psicologia e da religiosidade; educação e religiosidade. O objetivo do presente ensaio é elaborar uma revisão crítica dos principais textos sobre o tema, buscando-se apontar algumas sendas para futuras investigações.

Medicina e religiosidade

A área da saúde é uma das que, mais precoce e profundamente, tem investigado o tema medicina versus religiosidade.

O setor médico, em especial, dedica, há algumas décadas, sobretudo a dos anos 90, uma grande atenção ao tema. Quem não ficaria estarrecido até bem pouco, seja médico ou religioso, diante de afirmativas como:

1.  estados de meditação profunda, de experiências místicas intensas ou de imersão religiosa associam-se às alterações eletroencefalográficas;

2.  técnicas de imagens cerebrais, tipo Spect (single photon emission computed tomography) ou Pet (positron emission tomography), ou ressonância magnética mostram aumento de atividade em algumas áreas cerebrais e diminuição em outras áreas durante os estados mentais-corporais antes referidos;

3.  experiências místicas e meditativas são processos, provavelmente, mensuráveis e quantificáveis;

4.  o bem-estar espiritual é uma das dimensões de avaliação do estado de saúde, junto às dimensões corporais, psíquicas e sociais;

5.  médicos defendem que a reza intercessória (por outrem) pode ser um fator coadjuvante no tratamento de pacientes cardíacos.

Qualquer dessas afirmativas soaria, há duas ou três décadas, como algo completamente estranho e ilegítimo, tanto ao pensamento religioso quanto ao científico. Ciência e religião eram campos historicamente opostos, pelo menos, na cultura do ocidente. O apego da cultura ocidental por um pensamento linear (causalista e simplificador) e seu encantamento pelos avanços tecnológicos e sua crença numa filosofia empirista – em síntese, a adição ocidental ao positivismo estrito – configuram um conjunto de condições que, provavelmente, proporcionaram o isolamento e estimularam os conflitos entre religiosidade e pensamento científico.

Hoje, afirmar que a religiosidade de uma pessoa afeta seu corpo, sua mente, sua interação com os outros, além de seu espírito soa menos estranho, embora ainda seja, em muitos círculos, motivo para desconfiança e inquietação.

Atualmente, os estudos sobre os efeitos da religiosidade já se mostram sustentados por algumas evidências, inclusive empíricas. Estudos com Pet, em sujeitos capazes de meditação profunda praticando ioga, mostraram um aumento do metabolismo da glicose cerebral, quando se avaliou a relação dessa atividade metabólica entre as zonas frontal e occipital.4 Na mesma direção, estudos de Newberg et al5 evidenciaram aumento significativo da atividade cerebral, na região do córtex pré-frontal, durante a meditação, o que é consistente com o processo de atenção focalizada.O exame mais detalhado das relações entre religiosidade e condições físicas, psíquicas e sociais do indivíduo só pôde ocorrer depois que a cultura conseguiu desatrelar-se do pensamento positivista estrito, dominante até o século XX. Nas últimas décadas, o processo de emergência de um novo paradigma, fato que está ainda a ocorrer,6 é que deu sustentação para que, em lugar de distanciamento e desconfiança, surgisse proximidade e interesse recíproco a religiosos e cientistas.

Maass,7 por exemplo, investiga a tese de que orações podem ajudar a curar doentes. Preces intercessoras dirigidas, antes das intervenções de médicos, a pacientes que se submeteriam a angioplastias trazem resultados positivos, formando, assim, um elo entre espiritualidade e saúde.

Ainda que revistas científicas de impacto elevado, como Lancet, New England Journal of Medicine, Archives of Internal Medicine, JAMA, ampliem gradativamente seus espaços a temas religiosos, atualmente é prematuro e “inapropriado” ligar atividades religiosas a resultados médicos devido à carência de evidências sólidas e aos substanciais assuntos éticos ainda não examinados”.8 Assim, ao considerarem a complexidade e o tempo médico que seriam requeridos para poder tratar desses assuntos em profundidade com os pacientes, vários autores8,9 mostram-se reticentes em prescrever, diretamente, um envolvimento médico amplo sobre temas religiosos durante as consultas. Mas, não apenas a área médica mostra-se investindo nesse assunto.

Psicologia e religiosidade

Atualmente, há numerosas investigações que promovem a interface religião e psicologia. Nas últimas décadas, surgiu uma volumosa bibliografia que explora, desde a análise teórica do tema até sua exploração, por meio da pesquisa empírica10-17 em diferentes partes do mundo (em Portugal, Martins),18 inclusive no Brasil.19-22 Até o início dos anos 60, os estudos eram dispersos. Foi nessa mesma época que surgiram as primeiras revistas científicas especializadas, entre eles o Journal of Religion and Health, que iniciou em 1961. De qualquer modo, apenas mais recentemente surgiram estudos em que a metodologia trouxe maior clareza às tentativas anteriores de sumarizar os achados das pesquisas prévias. Um exemplo disso é a monografia de Batson et al,23 em que, mediante um método meta-teórico de análise, que permitia criar categorias conceituais aos termos “religião” e “saúde mental”, os autores puderam catalogar os trabalhos revisados segundo as definições explícitas ou implícitas que traziam desses conceitos. O estudo revelou um padrão bastante coerente de que as correlações entre religião e as variáveis de saúde mental dependem mais do que uma associação de fatores separados: dependem de uma ação conjunta de fatores. Essas correlações teóricas – fatores “religiosidade” e “saúde mental” devem ser examinados de forma conjunta e não isoladamente – trouxeram mais luz sobre a complexidade do assunto e têm servido como um balizador metodológico para investigações na área. Não é difícil presumir que, em função da presença de fatores variados e atuantes simultaneamente, inadequações metodológicas tendem a ser freqüentes.

Entre os problemas metodológicos mais comuns sob esse ponto de vista, os autores têm encontrado:24-26

a.  utilização de amostras com o viés da conveniência;

b.  falta de controle das variáveis demográficas comuns;

c.  um viés do caráter correlacional dos procedimentos de pesquisa e, em conseqüência, um desvio com superinterpretação dos resultados;

d.  superinterpretação dos resultados, como, por exemplo, o achado extemporâneo, fictício, de relações de causa e efeito.

Muitos desses problemas metodológicos foram superados nos últimos anos, podendo evidenciar isto em estudos empíricos recentes.27 A partir dessa investigação, o presente estudo pretende selecionar dois aspectos do imenso espectro de investigações sobre o tema: um se refere à associação da religiosidade com o desencadear da psicopatologia; o outro, da religiosidade e sua possível influência profilática e promotora de saúde mental.

Relativo à primeira dimensão, há evidências, atualmente, relacionando uma condição à outra. Uma perspectiva interessante foi introduzida por Beit-Hallahmi,28 que, ao analisar as afinidades entre religiosidade e patologia mental, conclui que ambas pertencem a um único e mesmo continuum, sendo as diferenças entre elas mais de caráter quantitativo que qualitativo. Nessa concepção, podem-se detectar conteúdos, manifestações e mecanismos mentais similares entre os dois extremos. Mas, assinala uma diferença fundamental: no pólo da patologia mental, o sujeito não encontra a possibilidade de excursionar por estados regressivos transitórios e a serviço do ego, seja no campo cognitivo, seja no emocional. Desse modo, fica evidenciado que a religião contém fontes potenciais ao desenvolvimento de uma patologia e que, sob certas circunstâncias como crises sociais graves, há maior chance, de surgirem estados mentais desviantes.

Beit-Hallahmi27,28 enfatiza, também, a necessidade de usar metáforas, obtidas em outros domínios da experiência humana, na tentativa de entender fenômenos religiosos. Em sua experiência, “arte” e “psicopatologia” têm sido as metáforas que ele mais tem empregado ao tentar decifrar os processos psicológicos envolvidos na religiosidade. O estudo ressalta a necessidade de um percurso das investigações pela via metafórica para reiterar-se sobre a inevitável visão de complexidade que tais estudos requerem, inclusive com requerimentos especiais de linguagem, sob pena de incorrer-se a simplificações que deformem o fenômeno religioso.

O segundo ponto que o estudo enfatiza se refere à indagação sobre a possibilidade da religiosidade poder ter um efeito preventivo para os padecimentos mentais. O fato da religião poder funcionar como um fator positivo ao manejo (coping) de situações de estresse é algo bastante encontrado na literatura.11,15,18 A afirmação de que a religiosidade possa ser uma fonte rica para encontrar propósitos de vida, assim como para formular orientações cognitivas e avaliações de situações vitais, evidencia seu potencial como função mental de buscar sentidos para viver e, em conseqüência, ter, por esse caminho, uma capacidade preventiva nos transtornos mentais.29 Ao apontar, nessa última direção, o recente ensaio de Myers,30 o estudo indaga-se pela associação entre religiosidade e felicidade. Um comentário interessante é de que ao reexaminar a afirmativa de Freud (1928) de que a religião tende a estimular a culpabilidade, a reprimir a sexualidade e a suprimir as emoções, criando condições para engendrar uma neurose obsessiva, torna-se uma afirmativa que se segue verdadeira apenas “para algumas formas de experiência religiosa”.31 Há, atualmente, crescente evidência científica de que a atividade religiosa geralmente associa-se a variados critérios de saúde mental e de bem-estar subjetivo. Assim, é possível identificar que norte-americanos ativamente religiosos são muito menos propensos do que os não-religiosos para se tornar delinqüentes, abusar de álcool e drogas, chegar ao divórcio e cometer suicídio.23,30 Os mais religiosos tendem a fumar e a beber menos, o que, pelo menos em parte, explica o porquê de sujeitos ativamente religiosos terem propensão a uma melhor saúde física e a alcançar a longevidade.32,33 Aliás, entre longevos, um estudo metanalítico de Okun & Stock34 aponta como os dois melhores preditores de satisfação com a vida: a saúde e a religiosidade.

Em estudos amplos, desenvolvidos por Myers,30 recentemente, sobre dados do National Opinion Research Center dos EUA, avaliando mais de 34 mil participantes em relação a seu estado de felicidade e a sua freqüência de prática religiosa, evidenciou-se uma nítida correlação entre essas variáveis (Figura).

Então, levando em conta o potencial de continente e manejo (coping) da religião em situações estressantes e a perspectiva da religião como agente preventivo a padecimentos mentais, pode-se avançar em uma hipótese – para o campo da educação – sobre a probabilidade de correlações entre religiosidade e educação, seja de forma positiva, facilitando a aquisição de competências educacionais, seja negativa, caso venha a dificultá-las.

Adaptado do General Social Survey National Opinion Research Center, 1972 to 1996, sobre 34.706 participantes.

Figura - Atividade religiosa e felicidade

Educação e religiosidade

É um fato bastante evidente que o ajustamento, no sentido de bem-estar, do aluno está implicado em seu rendimento escolar, bem como está associado a condutas e manifestações em outras áreas de sua vida, inclusive, associado a auto-estima.35 A auto-estima, por sua vez, correlaciona-se, inversamente, ao fracasso escolar, à delinqüência, à atividade sexual prematura, à gravidez indesejada e ao abuso de drogas.36 Esses achados de Kaplan36 são corroborados apenas em parte, pois nem sempre os autores encontraram correlação estatística positiva entre religiosidade e auto-estima. Tendem as investigações, entretanto, como se pode ver no conjunto desses estudos, a detectar correlações negativas significativas para a tendência ao suicídio, ao abuso de drogas, à delinqüência e ao início prematuro da sexualidade, corroborando nessa parte com os achados de Kaplan.36

No estudo de Bagley & Mallick,35 antes citado, alguns resultados contradizem o dado de não-correlação, antes assinalado, entre religiosidade e auto-estima. Esses autores encontraram associação significativa entre as duas variáveis.

Os achados mostram que há, na literatura, muitos pontos ainda por esclarecer, pois variados estudos mostram resultados divergentes, seja na relação de religiosidade e sua repercussão em sexos diferentes, seja entre diferentes formas de religião ou as variadas formas de praticá-las , que se associam aos diferentes níveis de auto-estima.36

Em relação a fatores étnicos e sociais associados à religiosidade, um estudo realizado em duas regiões dos Estados Unidos (Georgia e Alabama) com crianças negras da zona rural e da urbana sinalizou uma outra forma de pensar sobre o tema, considerando a presença da mãe e seu envolvimento com atividades escolares e religiosas. Há evidências de que esse nível de envolvimento materno produza melhores resultados no desenvolvimento psicossocial e cognitivo de seus filhos.37

Conclusão

Essas breves referências já permitem perceber que há muitos aspectos por investigar sobre os processos implicados na religiosidade. Parece ser multiforme o modo como ela se relaciona às condições vitais do sujeito, como sua própria imagem, o conceito de si, os estados de saúde, as condutas interpessoais, a inserção social. São condições como essas que estão a requerer estudos aprofundados, mais ainda em regiões menos desenvolvidas, onde fatores como religiosidade podem tornar-se de importância crucial.

Para concluir o estudo, há algumas perspectivas encontradas em trabalhos consistentes desenvolvidos no Brasil que servem de parâmetro para as fundamentações deste estudo.

Num detalhado estudo realizado por Damiani (1998)38 sobre fracasso escolar, envolvendo a área de Pelotas, a autora evidenciou a correlação entre estado socioeconômico da família, atividade parental, gênero, etnia, estado nutricional da criança e variáveis relativas à escola, no sentido de que, quanto piores as condições, maiores os riscos e os efetivos fracassos escolares. Entretanto, esse estudo não incluiu a dimensão “religiosidade”. Da mesma forma, Victora et al39 não incluiu o termo religiosidade em um estudo de coorte, iniciado em 1982, sobre o universo de6.000 crianças nascidas em Pelotas. É importante acentuar que estudos desse porte, investigando uma multiplicidade de variáveis intervenientes, tenham descuidado a dimensão espiritual. Provavelmente, dispor desses aspectos da vida espiritual e examinar as correlações estatísticas de fatores espirituais a essas múltiplas variáveis venham se tornar elementos relevantes em planejamentos de saúde individual ou coletiva.

Na investigação de Silva et al,40 realizada em Pelotas, Brasil, buscou-se identificar e entender diferenças no desempenho escolar relacionadas à cor e ao gênero. Dentre os resultados obtidos, causam impacto os que dizem respeito aos determinantes de cor e sexo sobre os índices de reprovação das crianças pesquisadas. Quanto ao sexo, o índice de reprovação foi maior entre os meninos do que entre as meninas. Esse índice eleva-se significativamente quando se trata de meninos negros. Os autores consideram estar frente a uma questão multifacetada, em que buscam estabelecer possíveis conexões entre o desempenho escolar dos alunos e as relações de gênero que estão presentes, tanto nos aprendizes quanto nos que ensinam. Entendem que tais relações dão significado aos atos de aprender e de conhecer, e que “não-aprender” as dificuldades (fraturas) pode representar, em nível simbólico, que os processos cognitivos, por alguma razão, encontram-se “aprisionados” na expressão de Fernández.41 O presente estudo também deixou de lado toda a implicação possível da religiosidade no desempenho desses alunos, marcando, outra vez, a carência de investigações com essa interface.

De qualquer modo, a tendência geral que se pode delinear é a de que “a experiência religiosa deixou de ser considerada automaticamente como fonte de patologia, e, em certas circunstâncias, passou a reconhecer-se como dinamismo ao reequilíbrio da personalidade”.18

É dentro dessa perspectiva que o estudo pretende inserir a necessidade de estender as investigações sobre a interface da religiosidade com diferentes dimensões do bem-estar pessoal, incluindo-se no campo específico da educação.

No Brasil, alguns estudos correlatos, mas não exatamente sobre a interface em questão, têm evidenciado a importância desse campo de conhecimento sobre os estados aflitivos de indivíduos pobres.42 Essa autora, uma antropóloga radicada na Bahia, aponta o fato de que as religiões “reinterpretam a experiência da doença e modificam a maneira pela qual o doente e a comunidade percebem o problema”, e, por essa via, promovem um alívio da dor e da aflição.42

Com isso em mente, é possível a inferência de que a religiosidade poderá, de forma análoga, incidir sobre os processos de bem-estar, assim como os relativos à aquisição de conhecimentos, no sentido de facilitá-los ou dificultá-los, segundo o modo como o indivíduo pratica, percebe e compreende o fato religioso ou a divindade.

Agradecimento

Agradecemos a leitura crítica e as sugestões feitas pelo Dr. Jair Mari.

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