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Psiquiatria na prática médica  

Órgão Oficial do

Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM

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O papel das humanidades na medicina

Em um texto memorável sobre a vida e a obra de D. Gregorio Marañón, introduzindo os volumes de suas obras completas, o médico e historiador Pedro Laín Entralgo, ao buscar os fundamentos da visão da patologia em Marañón, identifica o que, em sua opinião, apresenta-se como as cinco fontes do saber médico na obra do eminente endocrinologista espanhol.1 São elas:

1.  a clínica, ou seja, o conhecimento da realidade do paciente. “Desde el coloquio que nos introduce en la intimidad del paciente, hasta el análisis que nos revela la composición química del plasma, passando, como es obvio, por los métodos de la semiologia más clássica y tradicional: inspección, palpación, percusión y ascultación”;2

2.  a anantomia patológica entendida não apenas como “simple recopilación inerte de los datos que la bibliografia ofrece”, mas também como fruto da investigação direta e pessoal;

3.  a fisiopatologia tanto clínica quanto experimental;

4.  a etiologia em seu sentindo mais amplo, envolvendo não apenas os aspectos estritamente biológicos como também os biográficos;

5.  a literatura, a arte e a experiência extramédica da vida, que, para Marañón, tem uma importância tão grande quanto as outras fontes, à medida que é na fonte das humanidades em que o clínico encontra algo de fundamental ao bom exercício da prática médica: intuições sobre a vida humana. Isso porque, “cuando el médico ve en el enfermo al hombre que hay en él, y no sólo el estómago o la cápsula suprarenal que en él están alterados, por necessidad hay de volver de cuando sus ojos a los ‘especialistas en vida humana’, y estos són, junto a los psicólogos de oficio, y a veces muy sobre ellos, los pensadores y los artistas...”.3

E acrescentando com palavras do próprio Marañón: “Tal vez se nos reproche el excessivo uso que hacemos de los ejemplos literarios. Lo hacemos así por creerlos tan instructivos como las descripciones de los médicos. El artista recoge sus impresiones directamente de la realidad, sin los prejuicios científicos que restan valor humano a las observaciones médicas... Por ello hemos de acudir a los grandes artistas, que son los psicólogos supremos...Hoy podemos estudiar los sentimentos humanos en las comedias de Shakespeare mucho mejor que en el Tratado de las pasiones, de Descartes. No hay que ser el príncipe que todo lo aprendió en los libros, pero tampoco el hombre que lo aprendió todo en la vida”.4

Todas essas considerações sobre o papel da literatura, das artes e, enfim, das humanidades no saber médico derivam, sem dúvida, de uma visão muito particular desse mesmo saber.

Gregorio Marañón, que nasceu em Madrid em 1887 e morreu nessa mesma cidade em 1960, foi um dos principais defensores e sistematizadores da medicina personalista, ou seja, da medicina baseada na pessoa.5 Para ele, a pessoa ou indivíduo se apresenta na medicina sempre como o primeiro, o principal, “el patrón y el molde al cual se ajusta la enfermidad”.

“El problema de cada paciente es, pues – afirma o médico espanhol – como el producto de las cantidades, una de valor conocido, que es la enfermedad misma, la tifoidea, la diabetes, la que sea, y outra de valor eminentemente variable, que es la constituición del organismo agredido por la enfermedad”. Dessa forma, a doença “no es sólo la inflamación o el deterioro de tal o cual órgano, sino todo esse mundo de reacciones nerviosas del sujeto enfermo, que hace que la misma úlcera de estómago, por ejemplo, sea una enfermedad completamente distinta en un segador y en un professor de Filosofia.”6 Nesse sentido, a “investigação” do doente requer, antes de tudo, a história rigorosa, não só clínica, mas biográfica do paciente, necessária não só para compreender a doença, como para “atar al paciente a la legítima sugestión del médico”.

Essa visão da medicina centrada no indivíduo, na pessoa – sem, é claro, desmerecer ou desconsiderar o igual papel representado pela etiologia – acaba exigindo, portanto, um saber diferenciado do saber especificamente físico-biológico. Trata-se do saber humanístico. Saber cujas principais fontes estão, como bem colocava Marañón, na literatura, na arte e na experiência extramédica da vida. Como o patologista, especialista em doenças, o médico humanista deve recorrer ao artista, ao filósofo (especialistas em vida humana), se quiserem exercer uma medicina verdadeiramente humana e eficaz.

Durante boa parte da história da medicina, o saber humanístico se constituiu em fonte quase exclusiva do saber médico. Isso só começou a mudar a partir do século XIX, quando o desenvolvimento das ciências biológicas, em confluência com a física, a química e a matemática, determinou uma reorganização do saber médico que, paulatinamente, foi desconsiderando as fontes das humanidades.7 Desde então, foram muitos os que alertaram o perigo da desumanização do saber médico e da medicina como um todo, porém esse processo de “cientificação”ou “biologização” acabou prevalecendo, principalmente a partir da segunda metade do século XX.

Gregorio Marañón, a meu ver, foi um dos primeiros “modernos” não só a fazer uma crítica pós-romântica do paradigma médico contemporâneo como também foi um dos poucos a resistematizar o saber médico por meio da reincorporação das humanidades, sem deixar de considerar e valorizar as conquistas das outras ciências agora chamadas médicas ou da saúde.8

Toda essa crítica e resistematização parecem encontrar uma especial ressonância atualmente, à medida que a questão do humanismo e da humanização da medicina aparece como um dos grandes temas do momento.

Nunca como hoje, acredito, falou-se tanto da necessidade de humanizar a medicina e o ensino médico, porém, diretamente proporcional é a confusão e o desconhecimento que existe sobre o que é humanismo e o que vem a ser humanizar a medicina. Nesse sentido, a releitura da obra de Marañón aparece como uma iniciativa altamente útil no esforço, por definir e sistematizar o resgate do humanismo no saber médico, assim como indicar os caminhos para uma efetiva humanização da prática e do ensino médico.

É dentro desse contexto, portanto, que se retorna a discussão sobre o papel das artes ou, num sentido mais genérico, das humanidades no saber e na prática médica.

Para Marañón, o recurso da literatura, das artes e da filosofia se apresenta como fundamental para o desenvolvimento de uma medicina que se quer cada vez mais integral, holística, personalista. Isso porque é por meio das humanidades que se pode chegar a um conhecimento mais abrangente e preciso da realidade humana, da vida pessoal e individual. As artes e as humanidades – literatura, filosofia e história – são como “janelas” ou antes “bisturis” que possibilitam adentrar no íntimo da alma humana, no âmago da vida pessoal e individual, que afinal é o principal para o saber médico. Além dissso, as artes, a literatura e a história costumam ser despertadores privilegiados do interesse e do amor pelo humano que, para Marañón, são a base da autêntica vocação médica.9 Segundo ele, sua própria vocação para a medicina nasceu principalmente do interesse10 pelo ser humano, pessoal, individual, que surgiu, dentre outras coisas, da leitura dos clássicos da literatura e da historiografia.11

De fato – não é só na visão de Marañón –, a verdadeira obra de arte tem um incrível poder mobilizador. Possui a capacidade de criar empatia, gerar crises, provocar mudanças que são essenciais ao processo da humanização da pessoa que se realiza como indíviduo, seja um médico, um estudante de medicina, um técnico, um engenheiro ou o que for. Isso porque, como bem coloca Alfonso López Quintás, ao discorrer sobre o papel da análise literária na formação humana, uma obra de arte “no es un objeto sino un ámbito de realidad; no narra hechos sino expresa acontecimentos; no muestra sólo el significado de las acciones, sugiere además su sentido; no describe objetos, nos hace asistir más bien a procesos de entreveramiento de ámbitos que dan lugar a otros ámbitos o los destrueyen”.12

Em suma, “una obra literaria (obra de arte) no es um medio para comunicar el autor determinadas experiencias. Es el medio en el cual realiza él mismo tales experiencias.” Conseqüentemente, conclui o autor, “interpretar una obra se reduce a verla desde fuera y hacerse cargo de lo que en ella acontece. Significa entrar en juego com ella, rehaciendo personalmente sus experiencias clave. En la base de toda obra de calidad se hallan una o varias experiencias que impulsan la acción y le dan sentido. Al vivirlas por propia cuenta el lector, se iluminan em su interior las intuiciones fundamentales que impulsaron la génesis de la obra. A esta luz puede muy bien realizar uma lectura genética de la misma, leerla como si volviera a gestar, y compreender así todos sus pormenores, hasta el vocablo más aparentemente anodino.”13

Ou seja, em uma verdadeira obra de arte, seja literária, cinematográfica ou teatral, não só o autor, mas também o leitor (espectador, ouvinte etc) são convidados a realizar experiências que se geram na obra, levando-o, assim, a recriar e a reviver de maneira única e pessoal essas mesmas experiências, desencadeando um processo altamente fecundo no indivíduo que se envolve nessa leitura genética da obra.

Sem dúvida, isso pressupõe método e orientação que, ao propiciar esse tipo de leitura ou fruição, proporcionam, além do envolvimento emocional e existencial do leitor/fruidor, seu envolvimento reflexivo ou sapiencial, ou seja, a capacidade de tirar lições, de aprender com a obra e de traduzir tais ensinamentos em conduta, em praxis vivencial.

Mais uma vez, aproximando-se da visão de Marñón, ao definir humanismo, ele o faz atrelando-o mais ao mundo do vivencial do que meramente intelectual: “El humanismo es mucho más gesto y conducta que, en su sentido estricto, saber”, afirma em um prefácio para um livro sobre história da tuberculose, intitulado “Enciclopedismo y Humanismo”.14

Sem dúvida, a leitura dos clássicos – não qualquer leitura, bem entendida – e a fruição de obras cinematográficas, teatrais e históricas sempre foram e continuam sendo o caminho mais adequado para uma iniciação no processo de formação e desenvolvimento pessoal humano. Não se pode postular um humanismo ou uma humanização que não passe pela experiência profunda da obra de arte, seja ela qual for. O que se faz necessário atualmente, dentro do contexto da formação médica, é não apenas o reconhecimento do papel das humanidades nesse processo, mas também é fundamental o reconhecimento da precisão teórica e metodológica do “ensino” e da incorporação desse saber humanístico no universo das ciências da saúde, em geral, e da medicina, em particular. Se o humanismo não pode ser confundido com simples erudição ou “enciclopedismo”, ele também não pode ser reduzido à simpatia e aos bons sentimentos. Humanismo, que é “mucho más gesto y conducta” que “saber”, não surge de “cosas radicalmente inventadas” – citando Don Gregorio Marañón – sino en cosas nacidas del pasado, del pasado fecundo...”.15 Reconciliar passado, presente e futuro é o primeiro passo para  pensar em uma retomada verdadeira e eficaz do ensino de humanidades na formação dos médicos, assim como na redefinição dos paradigmas do saber médico contemporâneo.

 

  1. Entralgo, P. Laín, “Vida, Obra y Persona de Gregorio Marañón”in Obras Completas de Gregorio Marañón, Vol 1, Introducción, Madrid, 1965, pp. XLIX ess.
  2. Ibid, p.L.
  3. Ibid, p.LI
  4. MARAÑÓN, Gregorio, La Edad Crítica, Madrid, 1925, prólogo, apud ENTRALGO, P.L., op.cit., p. LI.
  5. Espasa-Calpe. Madrid. 1976
  6. MARAÑÓN, G., Vocación y Ética, Madrid, Espasa-Calpe, 1976; Obras Completas, Tomo IX.
  7. “A (re)humanização da medicina” in Psiquiatria na Prática Médica, Vol. 33, n.2, 2.00, pp.5-8. Versão eletrônica: www.epm.br/polbr/ppm.
  8. Cf. Entrealgo, P.L., Op.cit.
  9. “Vocación y ética” de Marañón.
  10. É preciso esclarecer que a palavra amor para Marañón tem um significado muito mais profundo e complexo do que pode parecer à primeira vista, acostumados como estamos a qualificá-la a partir do senso comum. Na verdade, para ele o conceito deriva de uma reflexão filosófica e antropológica do termo, que infelizmente não é possível analisar nesse editorial.
  11. Cf. Entralgo, P.L., op. cit, p. IX.
  12. Lopez Quintás, A., “El análises literario y su papel formativo”in Convenit International N. 1, 2000, disponível em www.hottopos.com/convenit/1q1.htm
  13. Ibid, p.L.
  14. In Vocación y Ética y otros ensayos, op. cit, p.383.
  15. Ibid, p.L.

Dante Marcello Claramonte Gallian
CeHFi – Unifesp

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Volume 34, número 4

2001/2002