UNIFESP

Psiquiatria na prática médica  

Órgão Oficial do

Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM

editorial

especial

atualização

agenda

instrução aos autores

equipe

outras edições

Alterações cardiovasculares induzidas pelo uso de medicações psicotrópicas

Considerações psicanalíticas a respeito das terapias de vidas passadas

Considerações psicanalíticas a respeito das terapias de vidas passadas*

Psychoanalytical thoughts about past lives therapy

Sérgio Tellesa e Guillermo Biglianib

aDepartamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. bAssociação Paulista de Psicanálise da Família e da Instituição. São Paulo, SP

 

Resumo
Os autores mostram como os pressupostos de uma psicoterapia científica diferem do conforto espiritual proporcionado pelas religiões. As terapias de vida passada são sucedâneos religiosos e negam a realidade psíquica dos pacientes, projetando em supostas vidas passadas conflitos atuais.

Descritores
Terapia de vidas passadas. Terapias cientificamente orientadas. Psicanálise. Objeto transgeracional. Ciência e religião.

 

Abstract
T
he objective was to show the difference between spiritual consolation provided by religion and the therapeutic rationale derived from scientifically based psychotherapies. Past lives therapies are religious artifacts that deny the psychic reality of the patients, projecting in supposed past lives their present conflicts .

Keywords
Past lives therapy. Scientifically based psychotherapies. Psychoanalysis. Transgenerational object.

 

Em propaganda recente sobre cursos de formação psicoterápica, oferecidos tanto por uma entidade ligada às chamadas “terapias de vidas passadas” (TVP) quanto por outra auto-intitulada “Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil (SPOB), informa-se que esta, apoiada na infra-estrutura dos cultos evangélicos fundamentalistas, “formou”, em seis anos, um total de 1.500 psicanalistas em todos os estados do país. No momento, mais 2.200 estariam em “formação”.

Fica claro que há, na TVP e nas postulações da SPOB, uma mistura de crença religiosa com a prática da psicoterapia como procedimento médico ou psicológico.

Frente a esse estado de coisas, o presente estudo pretende estabelecer alguns critérios que ajudem a evidenciar essa confusão e a desfazê-la.

Ninguém desconhece a extensão da presença da religião na história da humanidade. Sabe-se que o debate sobre o assunto é inesgotável, e sua discussão, sempre difícil, pois, sendo a religião poderoso pólo de identificação na estruturação do sujeito, abordá-la ou questioná-la faz o indivíduo sentir-se ameaçado em sua própria identidade.

Apesar disso, este estudo aborda alguns pontos que parecem nortear a questão, baseando-se nos ensinamentos de Freud, que sempre reconheceu a extraordinária importância da religião em vários trabalhos, como: “O futuro de uma ilusão”, “O mal-estar na cultura”, “Totem e tabu”, “Moisés e o monoteísmo”, “O ego e a psicologia das massas”, “A questão de uma Weltanschauung”, “ Rituais obsessivos e práticas religiosas”. Além de Freud, outros autores também a estudaram, fazendo com que a bibliografia psicanalítica sobre o assunto seja extensa.

Freud afirmava haver, basicamente, duas formas de conceber o mundo (Weltanschauungen), as quais se opõem de maneira radical: a religiosa e a científica.

A forma religiosa implica a crença de uma verdade revelada.1 Isto significa que todas as religiões, sejam quais forem, acreditam ser possuidoras de uma verdade, de um conhecimento que lhes foi revelado diretamente por um ser divino e superior ou por um preposto seu – um representante ou mediador. Essa “verdade revelada” responde e satisfaz as angústias mais profundas do ser humano, aquelas decorrentes de seu desamparo frente às intempéries da vida e ao caminhar irrefreável para a morte, desamparo que o remete à desolação original de perda do narcisismo primário. As religiões prometem a proteção ininterrupta de um deus-pai, que aponta para uma vida eterna que nega a morte. As religiões organizam e sistematizam o pensamento mágico infantil, que passa a ser visto como dogma inquestionável, “questões de fé”, certezas inabaláveis.

A forma científica não acredita em verdade revelada. Para a ciência, a verdade é o produto do esforço humano para vencer a ignorância e o desconhecimento. É um trabalho incessante contra o pensamento mágico, tentando estabelecer o pensamento racional por meio de um método que é recente, quando comparado com o pensamento religioso. Trata-se do estabelecimento de hipóteses baseadas na observação dos fatos em jogo, que são testadas em experiências e em tentativas de acerto e erro. As verdades conquistadas pelo método científico estão sendo permanentemente postas à prova, testadas no dia a dia, no embate com a realidade. À medida que a realidade as contradiz, elas são abandonadas como errôneas, e se busca um novo paradigma que funcionará até ser substituído por outro mais condizente com o inapreensível real.

Freud diz que a visão científica oferece muito pouco para a humanidade, frente ao que oferece a visão religiosa. Poucos são os estóicos capazes de tolerá-la. Não surpreende, pois, que a religião continue mantendo seu grande poder de sedução e convencimento das massas.

A psicanálise está dentro dessa forma científica de ver o mundo. Ela não parte de verdades reveladas. Ela tem uma hipótese básica referente ao funcionamento psíquico, no qual joga papel preponderante a descoberta freudiana do inconsciente. Essa hipótese explica o funcionamento normal e patológico do psiquismo, possibilitando uma compreensão até então inexistente. Essa hipótese está longe de estar fechada. Na verdade, ela abre um campo novo de conhecimento, com muito ainda a ser feito. Se muitos pontos parecem bem estabelecidos, há muita divergência numa série de outros. Mas isto não deve causar espécie. Essa incerteza é própria de qualquer conhecimento científico. A ciência nunca diz estar de posse de toda a verdade; diz estar de posse da verdade possível no momento. Somente a religião tem toda a verdade e certezas inabaláveis.

Não se deve esquecer que foi longo o trajeto para desentranhar a medicina da religião. Nas antigas religiões, eram os sacerdotes que curavam os doentes, coisa que ainda hoje se vê em determinadas manifestações mais “primitivas”, como as religiões dos índios e as africanas, as macumbas, as contrafações espíritas, com seus passes e médiuns em comunicação com o além, etc.

Foi na luta para avançar do pensamento mágico (religioso) para o racional (científico) que a medicina paulatinamente separou-se da religião e se constituiu em um conhecimento objetivo.

Relembrar esses conceitos se faz necessário especialmente quando se pensa a respeito da psiquiatria, área que lida com o psiquismo, característica nobre do ser humano, a velha e sempre presente “alma” humana. Nessa atividade, mais do que em qualquer outra, a antiga fusão entre religião e medicina tende a permanecer. É necessário, então, estabelecer as diferenças.

Não se pode negar que a religião proporciona alívio à dor psíquica. Ela consola e dá conforto espiritual e diminui o sofrimento humano.

Mas é necessário discriminar o conforto espiritual, proporcionado pela religião, do efeito terapêutico de uma psicoterapia leiga, ditada pelos conhecimentos advindos da medicina, da psicologia, da psicanálise.

O conforto espiritual que as religiões oferecem parte do princípio de que a criatura – o homem – não mantém um contato com seu criador tal como é preconizado pelos cânones exigidos pela divindade; para restabelecer o contato, a criatura deve cumprir os ritos necessários: penitências, orações etc.

A psicoterapia leiga procura trazer alívio para o sofrimento psíquico, baseando-se em descobertas (científicas) que possibilitaram o estabelecimento de hipóteses sobre o funcionamento psíquico. A psicanálise entende o sofrimento psíquico como decorrente do longo processo de constituição do sujeito, do penoso abandono do narcisismo primário e do avanço para as relações objetais, cristalizando-se no embate edipiano. É um processo acidentado, do qual ninguém sai imune. Os conflitos infantis inconscientes serão reativados pela realidade na vida adulta. Sua terapêutica consiste em fazer o sujeito entrar na posse da verdade de seu desejo, assumindo a falta, a incompletude, a limitação e a consciência da morte – o que lhe permite ter autonomia e liberdade de escolha. Somente assim estará assumindo sua grandeza humana.

A psicanálise interpreta – grosso modo – o sentimento religioso como a persistência dos vínculos infantis com figuras paternas idealizadas, a quem se deve obediência e fidelidade e de quem se recebe em troca a proteção desejada. Entende-se que o conforto religioso fornecido pelas práticas religiosas reafirma a fantasia infantil e realiza seu desejo, especialmente o da negação da morte. É inegável que as práticas religiosas tranqüilizam e possuem um efeito “terapêutico” (no sentido de diminuir o sofrimento psíquico); entretanto, para isto ocorrer, paga-se o preço de manter vivo o pensamento mágico infantil.

Estabelecidos esses pontos, podemos falar sobre a terapia de vidas passadas (TVP). Embora grande parte da literatura da TVP afirme não ser ela uma prática religiosa, a hipótese básica que a fundamenta é a reencarnação (existência de vidas pregressas que, por terem deixado marcas no psiquismo, geram o atual sofrimento). Contudo, tal hipótese só pode ser recolhida dentro do campo das religiões. Em nenhum outro lugar tem ela guarida. Assim, a alegação dos praticantes da TVP de não serem religiosos parece mais uma evidência de sua confusão e embuste.

A TVP é um moderno sucedâneo das religiões, na medida em que sub-repticiamente usa seu grande trunfo: garante a existência de vida após a morte. Talvez, por esse motivo, as religiões não a considerem uma ameaça, diferente da psicanálise, vista como ameaçadora.

A TVP pode também ser entendida como um subproduto equivocado da psicanálise, pois usa de alguns recursos técnicos advindos da mesma, mas de forma distorcida e resistente. Observando alguns relatos de cura pela TVP, fica claro que ela faz uma apropriação indébita de vários procedimentos da primeira fase da prática analítica freudiana, quando os sintomas são remetidos a zonas erógenas e a acontecimentos (“traumas”) vividos que foram esquecidos pelo paciente. O trabalho terapêutico se liga à recuperação da memória desses traumas, o que traria o alívio necessário. A diferença é que, em vez de remeter essa experiência ao passado do paciente, ela é remetida para vidas pregressas. Além disso, seus praticantes, ignorando o inconsciente, aferram-se ao conteúdo manifesto e à informação consciente, dando crédito, por exemplo, ao delírio do paciente.

Os praticantes usam o modelo que Freud estabeleceu em  “Estudos da Histeria”,2 no final do século passado. Ignoram os desdobramentos da técnica analítica, que abandona a noção do trauma (sexual e infantil), e passam a centrar-se na transferência e, posteriormente, nas construções em psicanálise.

Nota-se que a TVP é um curioso híbrido da religião com a psicanálise, tal como o que é preconizado pela Sociedade Psicanalítica Ortodoxa do Brasil (SPOB).

Em um exemplo de Jerry Hall,3 vê-se o reforço das defesas e o afastamento da realidade psíquica: durante o tratamento, uma paciente regride a uma vida passada na qual é impedida de se casar com o homem que ama e é posta num convento, onde sofre com o sadismo de uma madre superiora, que a maltrata e corta seus cabelos. Em algum momento a paciente diz: “e ela voltou a fazer o mesmo”. A terapeuta investiga essa fala e diz a paciente que, nesta vida, ela fora impedida pela mãe de casar-se com o homem que amava e que, num determinado momento, a mãe cortou-lhe os cabelos como castigo.

O material mostra como os conflitos atuais agressivos com a mãe são projetados, negados e cindidos. Isto é “terapêutico” à medida que tranqüiliza em curto prazo a paciente, mas a mantém na ignorância de seus sentimentos ambivalentes em relação à mãe.

Se um analista recebe um paciente com fantasias centradas em vidas passadas, deverá interpretá-las com quaisquer outras idéias sobrevalorizadas ou delírios, procurando ver nos conteúdos manifestos e latentes seus sentidos transferenciais.

Sob outro aspecto, a TVP pode ser entendida como uma intuição ou pré-concepção, no sentido bioniano – forma concreta de pensar um novo conceito psicanalítico, o de “objeto transgeracional” ou “objeto de transmissão transgeracional”. Sobre o conceito, Eiguer comenta: “O objeto transgeracional fala de um ancestral, um avô (antepassado) ou um outro parente direto ou colateral de gerações anteriores, objeto que suscita fantasias, provoca identificações, intervém na constituição de instâncias psíquicas em um ou em vários membros da família”.4

Um aspecto decisivo a respeito do “objeto transgeracional” é o fato de colocá-lo como o objeto de um outro e não como objeto-suporte-direto da descarga pulsional do sujeito.4

Assim, a TVP pareceria ser a elaboração fantasmática e imaginária de uma percepção correta, aquela que diz que realmente se sofre com acontecimentos ocorridos em vidas passadas, só que de outrem. Sofre-se com as conseqüências de determinados acontecimentos ocorridos nas vidas de antepassados diretos: pais, avós e bisavós.

A TVP, ao falar da reencarnação, teria a intuição do “transgeracional”.

Cita-se – de forma muito abreviada – um exemplo de Eiguer, no qual se pode ver a proximidade entre o transgeracional e a TVP, no sentido já exposto. No caso Geraldo, encontra-se um paciente (delirante) que se considera filho de Adolf Hitler e Eva Braun. Logo fica-se sabendo que o pai de Geraldo tinha simpatia pelo nazismo e, quando criança, fazia parte de um coral que havia visitado a Alemanha e vários países europeus ocupados por alemães. Esse pai era muito ligado a sua própria mãe (avó de Geraldo) e, ao casar, foi morar na casa dela; a avó, no entanto, manteve total ascendência na casa e na educação do neto. A mãe de Geraldo perdera o pai aos 2 anos, e sua mãe a deixara com sua própria mãe (a avó), que a criara. Somente na adolescência a mãe de Geraldo voltou a morar com a mãe, que voltara a se casar. Identifica com a mãe que a abandonara, a mãe de Geraldo sentiu-se impossibilitada de assumir a função materna e não opôs resistência à sogra, que, de fato, assumiu a criação dele. Assim, os sintomas de Geraldo não decorrem de experiências em sua vida anterior, mas, sim, do passado das vidas de seus pais e avós.4

Para concluir, gostar-se-ía de esclarecer que, como não poderia deixar de ser, entende-se e compreende-se o sentimento religioso prevalente na maioria das pessoas e se reconhece o direito de exercer suas crenças e delas auferir conforto e segurança. Mas é importante que isso não seja confundido com um procedimento médico ou psicológico.

Referências

  1. 1 Sigmund F. A questão de uma Weltanschauung: Conferência XXV. Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise. Edição standard das obras completas. Vol. XXII. Rio de Janeiro: Imago Editora; 1976. p. 194
  2. Sigmund F. Estudos sobre a histeria. Edição standard das obras completas. Vol. II. Rio de Janeiro: Imago Editora; 1974. p. 43-59.
  3. Hall J. Terapia das vidas passadas. In: Hall, Judy: Fundamentos de terapia de vidas passadas. São Paulo: Editora Avatar; 1998. p. XIII e XIV.
  4. Eiguer A, org. A transmissão do psiquismo entre gerações: enfoque em terapia familiar psicanalítica. São Paulo: Unimarco Editora; 1998. p. 26, 27, 68-75.

*Trabalho apresentado no I Congresso Paulista de Psiquiatria, VIII Jornada Regional de Psiquiatria da Região Sul, entre 14 e 16 de junho de 2001.

Correspondência:
Sergio Telles
Rua Maestro Cardim, 560, cj. 194
01323-000 São Paulo, SP
el.: (0xx11) 283-5767
E-mail:
setelles@uol.com.br

capa

arrow22c.giftopo

Volume 34, número 2

abr ·jun 2001