UNIFESP

Psiquiatria na prática médica  

Órgão Oficial do

Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM

editorial

especial

atualização

agenda

instrução aos autores

equipe

outras edições

Alterações cardiovasculares induzidas pelo uso de medicações psicotrópicas

Considerações psicanalíticas a respeito das terapias de vidas passadas

Alterações cardiovasculares induzidas pelo uso de medicações psicotrópicas

Cardiovascular changes induced by psychotropic drugs

Anna Maria Niccolai Costaa e Iran Gonçalvesb

aDepartamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM. bCurso de Pós-Graduação da Disciplina de Cardiologia da Unifesp/EPM. São Paulo, SP

 

Resumo
As evidências têm demonstrado que diversos medicamentos utilizados na prática psiquiátrica podem ocasionar efeitos cardiovasculares importantes. Hipotensão postural, bloqueio de condução cardíaca e disfunção do nódulo sinoatrial estão entre os efeitos que podem acarretar conseqüências graves, principalmente em pacientes que apresentem condições de base não favoráveis como hipopotassemia, considerável perda de peso e desidratação. O artigo desenvolve esse tema e sua relevância clínica.

Descritores
Efeitos cardiovasculares adversos. Intervalo QT. Psicotrópico. Antidepressivo. Antipsicótico. Lítio.

 

Abstract
It has been demonstrated that several medications used in the psychiatric practice can cause significant cardiovascular effects. Postural hypotension, cardiac conduction blockade, and sinoatrial node dysfunction are among the ones that can lead to serious consequences, especially for those patients who have an underlining condition, such as hypokalemia, severe weight loss and dehydration. This topic and its clinical relevance are discussed here.

Keywords
Adverse cardiovascular effects. QT-interval. Psychotropic. Antidepressant. Antipsychotic drugs. Lithium.

 

Introdução
Em recente publicação, o National Health Service (NHS) do Reino Unido demonstrou que cerca de 4.000 pacientes sob acompanhamento psiquiátrico morrem a cada ano devido a suicídio, suspeita de suicídio, causas naturais, acidentes e homicídios;1 destes, um paciente morre por semana por morte súbita ou em circunstâncias inexplicadas. Geralmente são indivíduos que recebem altas doses de medicação, possuem problemas físicos de saúde e estão sujeitos às técnicas de contenção. Nesses casos, quando se adicionam doença física, dieta pobre, tabagismo, drogas e álcool, o risco aumenta consideravelmente.

Médicos de várias especialidades no Reino Unido estão empenhados em uma investigação prevista para durar 4 anos. Eles examinam com detalhe cada morte no NHS e nos hospitais psiquiátricos privados. Essa investigação analisará os eventos, comparando o tratamento utilizado em cada paciente. O objetivo é averiguar quais medicamentos foram utilizados, em que dosagem e em que combinações.

As mortes inexplicadas são geralmente atribuídas a “ataque cardíaco” e são registradas como “causa natural”; contudo, as medicações psiquiátricas podem causar efeitos adversos no sistema cardiovascular, como a hipotensão postural, e alterações nos processos de despolarização e repolarização ventricular, que são causas de arritmias letais ou potencialmente letais.

Foi com o objetivo de ressaltar tais eventos que este artigo traz uma revisão de literatura sobre alterações cardiovasculares que podem ser induzidas por medicamentos utilizados na psiquiatria.

Hipotensão postural
Tais sintomas surgem geralmente quando um paciente passa de uma posição supina para uma posição vertical. A hipotensão pode ser severa e causar perda de consciência devido ao baixo fluxo cerebral ou isquemia miocárdica devido à menor perfusão nas artérias coronárias.

Os riscos são maiores nos pacientes idosos, já que estes, geralmente, apresentam doença aterosclerótica sistêmica, menor sensibilidade dos barorreceptores ou fazem uso de medicações cardiovasculares que contribuem para a hipotensão – diuréticos, vasodilatadores, betabloqueadores.2

A pressão arterial cai abruptamente em 23,38% dos pacientes psiquiátricos durante os primeiros dias de tratamento com neurolépticos.3

O problema é freqüente com o uso de antidepressivos tricíclicos, porém menos com nortriptilina que com imipramina ou amitriptilina.4 Os antidepressivos inibidores da MAO geralmente também causam hipotensão postural; convém salientar, porém, que esses fármacos possuem um potencial para graves reações hipertensivas quando utilizados sem uma dieta apropriada ou em conjunto com outros medicamentos – descongestionantes, outros antidepressivos, agentes pressóricos.5

A venlafaxina possui um pequeno potencial para hipotensão ortostática,6 porém parece possuir um efeito dose-dependente na pressão arterial diastólica supina, causando elevações transitórias. Tal efeito é clinicamente significante em altas dosagens, sendo principalmente observado em homens e idosos.7 A incidência de hipotensão ou eventos relacionados ao uso de reboxetina foi em torno de 14%, enquanto com a fluoxetina foi de 6%.8

Os inibidores de recaptação de serotonina são raramente associados aos efeitos cardiovasculares como hipotensão, taquicardia e anormalidades do ECG.9

As medicações antipsicóticas do tipo fenotiazinas causam comumentemente hipotensão devido, primariamente, à ação inibitória do reflexo pressórico e também ao seu efeito antagonístico a adrenérgico central.10 A clozapina também causa hipotensão postural.11

Segundo as diretrizes do Collaborative Working Group, a olanzapina e a ziprasidona são provavelmente os agentes que causam menos hipotensão (e taquicardia reflexa).12

Os neurolépticos de alta potência e lítio raramente causam hipotensão postural.10

Alteração nas propriedades elétricas do coração
Os medicamentos psicotrópicos podem causar alterações nas propriedades elétricas das células cardíacas, manifestadas clinicamente por bloqueios de ramo, bloqueios na condução atrioventricular ou prolongamento do intervalo QT. Este último, capaz de levar ao desencadeamento de arritmias ventriculares complexas que podem ser causa de morte súbita.4,13,14 O intervalo QT, medido desde o começo do complexo QRS até o final da onda T, representa o período de tempo que o sistema elétrico cardíaco dos ventrículos leva para se despolarizar e se repolarizar, sendo padronizado para uma freqüência cardíaca de referência de 60 bpm com o uso do algoritmo de Bazett. Todavia, se o indivíduo apresentar outra freqüência cardíaca, deve-se aplicar um fator de correção. Portanto, o QTC seria esse intervalo corrigido pela freqüência cardíaca, sendo a fórmula mais utilizada: QT/(R-R).1,2 De modo geral, o intervalo QT é de 0,40 segundos ou menor; no entanto, pode ser prolongado em freqüências baixas.15 Nos anos 60, foi reportado que pacientes tratados com quinidina apresentavam prolongamento marcante do intervalo QT no ECG e síncope recorrente devido à taquicardia polimórfica ventricular denominada torsades de pointes. Tal arritmia é caracterizada por complexos QRS de amplitude variável que aparentam “girar” em torno da linha de base com freqüência de 200 bpm a 250 bpm (Figura). A arritmia pode ser mal tolerada pelo paciente e evoluir para morte súbita.

Figura - Torsades de Pointes

Os efeitos eletrofisiológicos tóxicos da quinidina se assemelham aos das fenotiazinas e aos dos antidepressivos tricíclicos; isto é, facilitam uma nova excitação por diminuição da velocidade de condução e dispersão temporal da duração do potencial de ação em diferentes fibras cardíacas.10

Medicamentos podem prolongar a duração do potencial de ação ventricular e o intervalo QT por meio de diferentes mecanismos iônicos. O traçado eletrocardiográfico reflete correntes elétricas cardíacas geradas por íons (Na+, K+ e Ca2+), entrando e deixando o citosol principalmente por canais transmembrana. Na+ e Ca2+ conduzem correntes despolarizantes para dentro da célula, enquanto K+ conduz correntes repolarizantes para fora da célula. Medicações psiquiátricas geralmente acarretam bloqueio de correntes de potássio. Tais correntes se direcionam ao meio externo e postergam a repolarização. Sob condições fisiológicas, muitas correntes de potássio associadas à voltagem participam no processo de repolarização: a) corrente transiente que se direciona ao meio externo (Ito), responsável pela repolarização rápida precoce; b) corrente delayed rectifier de potássio (IK), que, em ventrículos humanos, pode ser dividida em ativação rápida (IKr) e ativação lenta (IKs); e c) corrente inward rectifier (IKI), principal responsável pela repolarização rápida final e pela manutenção do potencial de repouso. Em 1995, foi estabelecida a ligação entre o gene mutante HERG, que codifica o canal IKr, e o prolongamento congênito do intervalo QT. O canal de potássio HERG é o homólogo humano do gen da Drosophila ether-a-go-go (eag). A expressão do HERG é proeminente no coração e está presente no cérebro, na retina, nas glândulas adrenais, nos pulmões e no timo.16 Geralmente medicamentos prolongam o intervalo QT, por bloquear canais de potássio associados à voltagem, e, seletivamente, IKr.

IKr representa um papel importante na repolarização dos miócitos cardíacos e no término dos batimentos individuais17-21 e é alvo da maioria das drogas que prolongam o intervalo QT do eletrocardiograma e que são associadas às ocorrências de taquicardia ventricular polimórfica (Tabela).


Tabela - Drogas associadas a torsades de pointes e/ou ao prolongamento de QT


Amitriptilina 

Amoxapina 

Clorpromazina 

Clomipramina  

Desipramina 

Doxepina  

Droperidol  

Flufenazina 

Haloperidol 

Imipramina  

Lítio

Maprotilina

Nortriptilina

Pimozida

Protriptilina

Risperidona

Tioridazina

Tiotixeno

Trifluoperazina

Ziprasidona


Os efeitos no ECG causados por antidepressivos tricíclicos atingem aproximadamente 20% dos pacientes que recebem doses terapêuticas. Imipramina prolonga o intervalo QT, alarga o complexo QRS, diminui a amplitude da onda T e produz arritmias ventriculares e supraventriculares.10 Em doses terapêuticas, o prolongamento do intervalo QT, causado pelos antidepressivos, é parcialmente devido ao alargamento do complexo QRS, produzido como resultado das propriedades bloqueadoras de canais de sódio e de diversos canais de potássio.22,23

Amitriptilina,24 imipramina,23,24 haloperidol,25 tioridazina26 e sertindol27 bloqueiam a IKr potencialmente mais que outras correntes de potássio, sugerindo que esse bloqueio seria o envolvido nos efeitos pró-arrítmicos.

O bloqueio de IKr, IKs ou ambos pode facilitar a ocorrência de oscilações conhecidas como pós-despolarizações precoces secundárias à reativação de correntes direcionadas ao interior da célula, que interrompem o curso normal da repolarização do potencial de ação, especialmente em freqüência cardíaca baixa.

Foram relatados casos de morte súbita em crianças fazendo uso de tricíclicos em níveis terapêuticos.28 Os antidepressivos devem ser prescritos com mais cuidado nos pacientes portadores de doença cardíaca isquêmica.29 Alguns casos de torsades de pointes foram relatados com o uso de haloperidol endovenoso.30

Apesar de, teoricamente, o antagonismo adrenérgico a1 produzido por sertindol ser capaz de reduzir a probabilidade de que um aumento de QTC leve ao desenvolvimento de uma arritmia,31 o sertindol foi associado a problemas cardíacos evidentes na fase de ensaios clínicos,32 o que acarretou sua retirada do mercado, em 1998, após a morte de 27 pacientes que recebiam o medicamento; destes, seis tiveram complicações cardíacas repentinas.

Outro antipsicótico retirado do mercado no Reino Unido, Bélgica e Holanda desde 31 de março de 2001 foi o droperidol. A companhia farmacêutica responsável pelo produto descontinuou sua produção devido a seu efeito potencial no intervalo cardíaco QT.33

Outro parâmetro a ser avaliado é a dispersão do QTC. Esta seria provocada por tempos de repolarização não-homogêneos, sendo definida como a diferença entre o QTC máximo e o mínimo nas doze derivações eletrocardiográficas. O tratamento crônico com medicamentos antipsicóticos em doses convencionais parece prolongar a dispersão do QTC em pacientes esquizofrênicos, mas não aumentar o risco de taquicardias ventriculares em pacientes com esquizofrenia na ausência de doença cardíaca.34 Em estudo feito em voluntários sadios, a dispersão da variação normal do QT é maior em homens, enquanto as mulheres apresentam um intervalo QT mais longo. Segundo os autores, os homens teriam um risco aumentado para morte súbita, enquanto mulheres teriam um intervalo QT mais longo, porém menor dispersão de QT, isto é, um QT mínimo mais longo que seria responsável pela menor dispersão de QT. Esse QT mínimo mais longo predisporia a um aumento no risco de torsade de pointes induzido por drogas.35 Segundo outro artigo, a morte súbita seria mais freqüente em homens que em mulheres quando há doença coronariana, porém a morte súbita não relacionada à doença estrutural cardíaca seria mais freqüente em mulheres.36

O FDA (Food and Drug Administration) atualmente requisita dados específicos de segurança cardiovascular, particularmente sobre interações medicamentosas que poderiam afetar o intervalo QT.37 Provavelmente antipsicóticos convencionais não seriam aprovados pelos padrões de segurança atuais.38 A ziprasidona, novo antipsicótico que brevemente estará no mercado, tem em sua bula os seguintes dizeres: “Quando da decisão dos tratamentos alternativos disponíveis para essa condição, o prescritor deve considerar o achado de uma maior capacidade da ziprasidona prolongar o intervalo QT/QTC comparado a outros vários antipsicóticos. O prolongamento do intervalo QTC é associado, em algumas outras drogas, à habilidade de causar arritmias tipo torsade de pointes, uma taquicardia ventricular polimórfica potencialmente fatal, e morte súbita. Em muito casos, isto leva à decisão da tentativa de uso de outras drogas antes de se usar ziprasidona. Não se sabe ao certo se a ziprasidona causa torsade de pointes ou aumenta a taxa de morte súbita.”39

Em estudo publicado recentemente, em que anormalidades eletrocardiográficas em pacientes tratados com clozapina foram estudadas, observaram-se achados importantes. A prevalência de anormalidades eletrocardiográficas em pacientes em uso de antipsicóticos – exceto a clozapina – foi de 13,6% na linha basal, havendo um aumento significante para 31,1% após a introdução da terapia com clozapina. Em alguns pacientes, tais achados normalizaram, apesar da utilização contínua da clozapina. A clozapina aumentou o intervalo QTC de forma dose-dependente, porém o prolongamento patológico do QTC foi raro.40 Alguns relatos de caso de cardiomiopatias também são encontrados na literatura.41,42

No caso dos antipsicóticos atípicos ou de segunda geração, é possível classificar os riscos de diferentes drogas: sertindol apresenta o mais alto, ziprasidona, um pouco mais baixo, seguida da risperidona e, finalmente, da quetiapina, clozapina e olanzapina, com efeitos insignificantes no intervalo QT.43

A tioridazina é utilizada por mais de 40 anos. Logo após sua introdução na prática médica, foram observados prolongamento do intervalo QT e indução de arritmias como taquicadia ventricular polimórfica.44 Embora alguns episódios ocorreram com altas doses ou superdosagem de tioridazina, muitos casos de torsades de pointes e morte súbita foram relatados em pacientes fazendo uso de doses rotineiras da medicação.10,45-48 O acúmulo de tioridazina em alguns tecidos como o coração, devido ao seu grande volume de distribuição (»600 litros), pode ser a causa da ocorrência de prolongamento QT em baixas concentrações plasmáticas.49 A bula da tioridazina foi alterada em julho de 2000, alertando a probabilidade de ocorrência de torsades de pointes.50

A freqüência de pacientes com prolongamento do intervalo QT causado por medicamentos é muito maior que a de pacientes que possuem a síndrome congênita de QT longo. Pacientes que desenvolvem prolongamento do intervalo QT podem ser portadores de formas subclínicas de síndrome de QT longo congênita.51 É importante salientar que a síndrome do QT longo é mais freqüente entre as mulheres. Outras condições, além da congênita e da induzida por drogas, podem afetar a repolarização cardíaca e causar torsades de pointes, incluindo hipopotassemia, hipomagnesemia, bradicardia, sexo feminino, intervalo QTC basal >0,46 s52 e perda de peso importante em pequeno período de tempo.53

Pacientes com transtornos afetivos apresentam uma taxa de mortalidade de doença cardiovascular maior que a esperada.54-56 Além disso, pacientes depressivos desenvolvem doença isquêmica cardíaca sintomática e fatal em taxas mais altas que os não-depressivos, e a depressão pós-infarto do miocárdio está associada ao aumento de mortalidade cardíaca.57 É possível que indivíduos depressivos apresentem uma atividade central que predisponha aqueles que são suscetíveis à arritmia ventricular. Pacientes depressivos teriam uma diminuição da atividade parassimpática comparada aos indivíduos-controle. Com isto, o limiar para fibrilação ventricular também estaria diminuído.58

Não se sabe se outros transtornos mentais como a esquizofrenia são per ser associados às alterações no intervalo QT, embora se saiba que morte súbita acontece em populações psiquiátricas e que pode estar relacionada às arritmias cardíacas. A hipopotassemia é comum em pacientes psicóticos em crise aguda, e a média do intervalo QTC, nesses pacientes, é prolongada, sendo o intervalo maior do que em pacientes psiquiátricos ambulatoriais.59

Pacientes com transtorno do pânico e depressão parecem apresentar uma maior variabilidade de intervalo QT do que os com controles normais.60

A incidência de torsades de pointes pode não estar relacionada à dose, embora seja, aparentemente, mais comum com o uso de altas doses de medicamento, concentração plasmática ou duração da terapia e pode ocorrer logo após o início do tratamento ou após longo tempo. Intervalos QT pré e pós-tratamento devem ser determinados com freqüência, e o medicamento deve ser interrompido ou reduzido se o intervalo QT for maior que 0,5 s, porém nenhum valor absoluto prediz o aparecimento de arritmias em todos pacientes.61

Disfunção do nódulo sinoatrial
Relatos europeus da década de 50, por meio de desenho transversal, indicaram que alterações eletrocardiográficas, particularmente achatamento da onda T reversível durante a terapia com lítio, eram relatadas em 20% a 100% dos indivíduos tratados.62-65 Mais significantes são os relatos de caso de disfunção do nódulo sinoatrial que, em alguns pacientes, leva à síncope.66-68

O estudo realizado pelo Departamento de Cardiologia do Instituto Karolinska69 relatou os seguintes achados:

A disfunção do nódulo sinoatrial, portanto é significantemente muito mais comum, e o efeito parece ser intrínseco e não causado por aumento do tônus parassimpático.69 No entanto, disfunção clinicamente significante foi incomum.

Em níveis terapêuticos, o lítio pode causar disfunção sinoatrial ou bloqueio sinoatrial, e, em pacientes com irritabilidade ventricular ou doença arteriosclerótica, o lítio pode acarretar taquicardia ventricular. A incidência de tais anormalidades parece ser maior em indivíduos com mais de 60 anos. Em níveis tóxicos, a incidência de alterações eletrocardiográficas é maior, podendo ocasionar disfunção do nódulo sinoatrial, bloqueio sinoatrial e flutter atrial, sendo de maior gravidade no caso de depleção de sódio.70 O transporte renal proximal não se diferencia adequadamente entre sódio e lítio;71 a depleção de sódio pode levar a um aumento de reabsorção de lítio e subseqüente intoxicação.72 Pacientes com doença cardíaca que fazem uso de diuréticos e lítio devem ser cuidadosamente monitorados.73,74 O sal de lítio pode predispor à depleção de volume por meio do desenvolvimento do diabetes insípido.75,76

Lítio produz uma hipopotassemia intracelular relativa77,78 e grave depleção de potássio, podendo acarretar miocardite.79

O anticonvulsivante carbamazepina também pode induzir disfunção do nódulo sinoatrial e bloqueio atrioventricular geralmente em nível terapêutico em idosos ou como conseqüência de superdosagem.80-82

Conclusão
Pacientes psiquiátricos possuem muitos fatores de risco adquiridos para doença cardíaca isquêmica como: fumo; inatividade; abuso de drogas ilícitas; e álcool. Outro fator de risco é o desequilíbrio eletrolítico que pacientes crônicos podem apresentar. A morte por doenças cardíacas em pacientes esquizofrênicos, por exemplo, é 1,5 vezes maior que em pacientes não-esquizofrênicos.83 O uso de diversos medicamentos concomitantes, de forma crônica, podem induzir efeitos aditivos benéficos, porém podem também induzir paraefeitos cardiovasculares potencialmente graves. Se adicionar fatores genéticos de difícil determinação a essa situação, o conjunto pode aumentar a suscetibilidade para eventos cardíacos fatais.

A discussão da importância do prolongamento QT é principalmente relevante quando se pode deparar com uma série de problemas para padronização de diretrizes para procedimentos. As dificuldades encontradas estão relacionadas à alta variabilidade intra (variação circadiana)84 e inter (sexo e idade) individual, sabendo-se que o sexo feminino e as pessoas idosas são fatores de risco para a ocorrência de prolongamento do intervalo QT,35 além da variabilidade individual de metabolização de diferentes drogas.

Outras dificuldades também seriam a medida do intervalo QT e a variabilidade da freqüência cardíaca, pois sabe-se que existem várias fórmulas para o cálculo de QTC, além da falta de definição de limites normais, de padronização na interpretação de traçados eletrocardiográficos, de correlação temporal entre o pico de concentração plasmática de medicamento e metabólitos e traçado eletrocardiográfico, e de identificação de variáveis dependentes (QTC, dispersão de QT, QT mínimo, QT máximo).85

Como os efeitos cardiovasculares de medicações podem surgir mesmo quando utilizados em doses terapêuticas e em um período inicial de uso, ressalta-se a importância de fazer um eletrocardiograma de 12 derivações quando se inicia uma medicação nova e no seguimento do tratamento. Isto é importante nos medicamentos referidos acima e nos casos em que o paciente é idoso ou tem história pessoal ou familiar de doença cardíaca.

Referências

  1. Health Service Journal, 8 de março de 2001. http://www.hsj.co.uk/
  2. Kapoor WN. Syncope in the older person. J Am Geriatr Soc 1994;42:426.
  3. Petrov A. Complications in the cardiovascular system from neuroleptic treatment. Vutr Boles 1987;26(5):72-6.
  4. Glassman AH, Bigger JT. Cardiovascular effects of therapeutic doses of tryciclic antidepressants. Arch Gen Psychiatry 1981;38:815-20.
  5. Lippman SB, Nash K. Monoamine oxidase inhibitor update. Potential adverse food and drug interactions. Drug Saf 1990;5(3):195-204.
  6. Feighner JP. Cardiovascular safety in depressed patients: focus on venlafaxine. J Clin Psychiatry 1995;56:574-9.
  7. Thase ME. Effects of Venlafaxine on Blood Pressure: A meta-analysis of original data from 3744 depressed patients. J Clin Psychiatry 1998;59(10):502-8.
  8. Montgomery AS. Reboxetine: additional benefits to the depressed patient. J Psychopharmacology 1997;11(4):S33-5.
  9. Burgraff GW. Are psychotropic drugs at therapeutic levels a concern for cardiologists? Can J Cardiol 1997;13(1):75-80.
  10. Fowler NO, McCall D, Chou TC, Holmes JC, Hanenson IB. Electrocardographic changes and cardiac arrhythmias in patients receiving psychotropic drugs. Am J Cardiol 1976;37(2):223-30.
  11. Miller DD. Review and management of clozapine side effects. J Clin Psychiatry 2000;61(Suppl 8):14-7. discussion 18-9.
  12. Collaborative Working Group on Clinical Trial Evaluations. Adverse effects of the atypical antipsychotics. J Clin Psychiatry 1998;59(Suppl 12):17-22.
  13. Arana GW, Hyman SE. Handbook of psychiatry drug therapy. 2th ed. Boston (MA): Little Brown; 1991.
  14. Risch SC, Groom GP, Janowsky DS. The effects of psychotropic drugs on the cardiovascular system. J Clin Psychiatry 1982;43:16-26.
  15. Cummins RO, American Heart Association. Suporte avançado de vida em cardiologia. Texas: American Heart Association; 1997. p. 3-6/3-7.
  16. Curran ME, Splawski I, Timothy KW, Vincent GM, Green ED, Keating MT. A molecular basis for cardiac arrhythmia: HERG mutations cause long QT syndrome. Cell 1995;80:795-803.
  17. Carmeliet E, Mubagwa K. Antiarrhythmic drugs and cardiac ion channels: mechanism of action. Prog Biophys Mol Biol 1998;70:1-72.
  18. Roden D, George A Jr. Structure and function of cardiac sodium and potassium channels. Am J Physiol 1997;273:H511-25.
  19. Sanguinetti M, Jurkiewicz N. Two components of cardiac delayed rectifier K+ current. Differential sensitivity to block by class III antiarrhythmic. J Gen Physiol 1990;96:195-215.
  20. Coetzee W, Amarillo Y, Chiu J, Chow A, Lau D, McCormack T, et al. Molecular diversity of K+ channels. Ann NY Acad Sci 1999;868:233-85.
  21. Abbot G, Sesti F, Splawski I, Buck M, Lehman M, Timothy K, et al. MiRP1 forms IKr potassium channels with HERG and is associated with cardiac arrhythmia. Cell 1999;97:175-87.
  22. Tamargo J, Valenzuela C, Delpón E. New insights into the pharmacology of sodium channel blockers. Eur Heart J 1992;13(suppl F):2-13.
  23. Valenzuela C, Sánchez-Chapula J, Delpón E, Elizalde A, Pérez O, Tamargo J. Imipramine blocks rapidly activating and delays slowly activating K+ current activation in guinea pig ventricular myocites. Circ Res 1994;74:687-99.
  24. Teschemacher A, Seward J, Hancox J, Witchel H. Inhibition of the current heterologously expressed HERG potassiumchannels by imipramine and amitriptyline. Br J Pharmacol 1999;128:479-85.
  25. Suessbrich H, Schönherr S, Attali R, Lang F, Busch A. The inhibitory effect of the antipsychotic drug haloperidol on HERG potassium channels expresssed in Xenopus oocytes. Br J Pharmacol 1997;120:968-74.
  26. Droleet B, Vincent F, Chachine M, Deschenes D, Nadeau S, Khalifa M, et al. Thioridazine lengthens repolarization of cardiac ventricular myocytes by blocking the delayed rectifier potassium current. J Pharmacol Exp Ther 1999;288:1261-8.
  27. Yang T, Roden D. Extracellular potassium modulation of drug block of IKr: implication for torsades de pointes and reverse use-dependence. Circulation 1996;93:407-11.
  28. No authors listed. Sudden death in children treated with a tricyclic antidepressant. Med Lett 1990;32(819):53
  29. Roose SP, Glassman AH. Antidepressant choice in the patient with cardiac diease: lessons from the cardiac arrhythmia suppression trial (CAST) studies. J Clin Psychiatry 1994;55(Suppl A):83-7.
  30. DiSalvo TG, O’Gara PT. Torsades de pointes caused by high-dose intravenous haloperidol in cardiac patients. Clin Cardiol 1995;18:285-90.
  31. Ben-David J, Zipes DP. Arrhytmia octet: torsades de pointes and proarrhythmia. Lancet 1993;341:1578-82.
  32. Lewis R, Bagnall A, Leitner M. Sertindole for schizophrenia. Cochrane Database Syst Rev 2000;(2):CD001715.
  33. http://www.mca.gov.uk/ourwork/monitorsafequalmed/safetymessages/droleptan.htm
  34. Kitayama H, Kiuchi K, Nejima J, Katoh T, Takano T, Hayakawa H. Long-term treatment with antipsychotic drugs in conventional doses prolonged QTC dispersion, but did not increase ventricular tachyarrhythmias in patients with schizophrenia in the absence of cardiac disease. Eur J Clin Pharmacol 1999;55(4):259-62.
  35. Kassotis J, Costeas C, Bedi AK, Tolat A, Reiffel J. Effects of aging and gender on QT dispersion in an overtly healthy population. Pacing Clin Electrophysiol 2000;23(7):1121-6.
  36. Kulbertus H. Cardiac arrhythmias in women. Rev Med Liege 1999;54(4):251-4.
  37. Wirshing DA, Erhart SM, Pierre JM, Poyd JA. Nonextrapyramidal side effects of novel antipsychotics. Current Opinion in Psychiatry 2000;13:45-50. http://www.co-psychiatry.com/
  38. Welch R, Chue P. Antipsychotic agents and QT changes. J Psychiatry Neurosci 2000;25(2):154-60.
  39. Bula americana da ziprasidona - Pfizer. http://www.fda.gov/cder/foi/label/2001/20825lbl.pdf
  40. Kang UG, Kwon JS, Ahn YM, Chung SJ, Ha JH, Koo YJ, et al. Electrocardiographic abnormalities in patients treated with clozapine. J Clin Psychiatry 2000;61(6):441-6.
  41. Leo RJ, Kreeger JL, Kim KY. Cardiomyopathy associated with clozapine. Ann Pharmacother 1996;30(6):603-5.
  42. Scelsa SN, Simpson DM, McQuistion HL, Fineman A, Ault K, Reichler B. Clozapine-induced myotoxicity in patients with chronic psychotic disorders. Neurology 1996;47(6):1518-23.
  43. Gury C, Canceil O, Iaria P. Antipsychotic drugs and cardiovascular safety: current studies of prolonged QT interval and risk of ventricular arrhythmia [review]. Encephale 2000;26(6):62-72.
  44. Kelly HQ, Fay JE, Lavert FG. Thioridazine hydrochloride (Mellaril): Its effect on the electrocardiogram and a report on two fatalities. Can Med Assoc J 1963;89:546-54.
  45. Schoonmaker FW, Osken RT, Greenfield JC. Thioridazina (Mellaril) induced ventricular tachycardia controlled with an artificial pace-maker. Ann Intern Med 1966;65:1076-8.
  46. Kemper A, Dunlap R, Pietro DA. Thioridazine-induced torsades de pointes: sucessful therapy with isoproterenol. J Am Med Assoc 1983;249:2931-4.
  47. Quieffin J, Brochet E, Gamerman G, Assayag P, Antony I, Valere PE. Troubles du rythme ventriculaires secondaires à une intoxication par thioridazine. Ann Cardiol Angéiol 1991;40:199-201.
  48. Hulisz DT, Dasa SL, Black LD, Heiselman DE. Complete heart block and torsade de pointes associated with thioridazine poisoning. Pharmacotherapy 1994;14:239-45.
  49. Hartigan-Go K, Bateman DN, Nyberg G, Martensson E, Thomas SHL. Concentration-related pharmacodynamic effects of thioridazine and its metabolites in humans. Clin Pharmacol Ther 1996;60:543-53.
  50. Bula americana da tioridazina- Novartis
  51. Napolitano C, Priori SG, Schwartz PJ. Low penetrance in the long QT syndrome: Clinical impact. Circulation 1999;99:529-33.
  52. Napolitano C, Priori SG, Schwartz PJ. Torsades de Pointes. Mechanisms and management. Drugs 1994;47:51-65.
  53. Thwaites BC, Bose M. Very low calorie diets and pre-fasting prolonged QT interval. A hidden potential danger. West Indian Med J 1992;41(4):169-71.
  54. Malzberg B. Mortality among patients with involution melancholia. Am J Psychiatry 1937;93:1231-8.
  55. Murphy JM, Monson RR, Olivier DC, Sobol AM, Leighton AH. Affective disorders and mortality. A general population study. Arch Gen Psychiatry 1987;44:473-80.
  56. Rabins PV, Harvis K, Koven S. High fatality rates of late-life depression associated with cardiovascular disease. J Affective Disord 1985;9:165-7.
  57. Roose SP, Seidman SN. Sexual activity and cardiac risk: is depression a contributing factor? Am J Cardiol 2000;86(2A):38F-40F.
  58. Roose SP, Dalack GW, Woodring S. Death, depression, and heart disease. J Clin Psychiatry 1991;52:34-9.
  59. Hatta K, Takahashi T, Nakamura H, Yamashiro H, Yonezawa Y. Prolonged QT interval in acute psychotic patients. Psychiatry Res 2000;94:279-85.
  60. Yeragani VK, Pohl R, Jampala VC, Balon R, Ramesh C, Srinivasan K. Increased QT variability in patients with panic disorder and depression. Psychiatry Res 2000;93(3):225-35.
  61. Tamargo J. Drug-induced torsades de pointes: from molecular biology to bedside. Jpn J Pharmacol 2000;83:1-19.
  62. Schou M. Electrocardiographic changes during treatment with lithium and with drugs of the imipramine-type. Acta Psyhiatr Scand 1963;39(Suppl):168-71.
  63. Schou M. Lithium in psychiatric therapy. Psychopharmacol 1959;1:65-78.
  64. Andreani G. Rilievi eletrocardiografica durante il trattamento di malattie mentali con sali di litio. G Clin Med 1957;38:1759-75.
  65. Demers RG, Heninger GR. Electrocardiographic T-wave changes during lithium carbonate treatment. JAMA 1971;218:381-6.
  66. Wellens HJ, Cats VM, Duren DR. Symptomatic sinus node abnormalities due to lithium carbonate therapy. Am J Med 1975;59:285-7.
  67. Wilson JR, Krus ES, Bailas MM, Rakita L. Reversible sinus-node abnormalities due to lithium carbonate therapy. N Engl J Med 1976;294:1223-4.
  68. Steckler TL. Lithium and carbamazepine associated sinus node dysfunction: nine-year experience in a psychiatric hospital. J Clin Psychopharmacol 1994;14:336-9.
  69. Rosenqvist M, Bergfeldt L, Aili H, Mathe AA. Sinus node dysfunction during long-term lithium treatment. Br Heart J 1993;70(4):371-5.
  70. Granoff AL, Davis JM. Heat illnes syndrome and lithium intoxication. J Clin Psychiatry 1978;39:103-7.
  71. Singer I, Rotenberg D. Mechanisms of lithium action. New Eng J Med 1973;289:254-60.
  72. Schou M. Pharmacology and toxicology of lithium. Annu Rev Pharmcol 1976;1:231-43.
  73. Thomsen K, Olesen OV. Precipitating factors and renal mechanisms in lithium intoxication. Gen Pharmacol 1977;9:85-9.
  74. Grau K. Lithiumforgiftning. Ugeskr Laeger 1987;140:720-1.
  75. Baylis PH, Heath DA. Water disturbances in patients treated with oral lithium carbonate. Ann Intern Med 1978;88:607-9.
  76. Forrest JN, Cohen AD, Torretti J, Himmelhoch JM, Epstein FH. On the mechanism of lithium induced diabetes insipidus in man and the rat. J Clin Invest 1974;53:1115-23.
  77. El-Mallakh RS. The Na, K-ATPase hypothesis for manic-depression. II. The mechanism of action of lithium. Med Hypotheses 1983;12:269-82.
  78. Tilkian AG, Schroeder JS, Kao JJ, Hultgren HN. The cardiovascular effects of lithium in man: a review of the literature. Am J Med 1976;61:665-70.
  79. Ananth J, Ghadirian AM, Engelsman F. Lithium and memory: a review. Can J Psychiatry 1987;32:312-6.
  80. Takayanagi K, Hisauchi I, Watanabe J, Maekawa Y, Fujito T, Sakai Y, et al. Carbamazepine-induced sinus node dysfunction and atrioventricular block in elderly women. Jpn Heart J 1998;39(4):469-79.
  81. Johnson CD, Rivera H, Jimenez JE. Carbamazepine-induced sinus node dysfunction. P R Health Sci J 1997;16(1):45-9.
  82. Checchini M, Magni M, Scaglione M, Vaccarella A. Cardiac effects of carbamazepine therapy. Minerva Cardioangiol 1995;43(9):379-81.
  83. Mortensen PB, Juel K. Mortality and causes of death in first admitted schizophrenic patients. Br J Psychiatry 1993;163:183-9.
  84. Murakawa Y, Yamashita T, Ajiki K, Sezaki K, Omata M. Ostensible day-night difference of QT prolongation during long-term treatment with antiarrhythmic drugs: reappraisal of the law of “regression to the mean”. J Cardiovasc Pharmacol 1998;32(1):62-5.
  85. De Ponti F, Poluzzi E, Montanaro N. QT-interval prolongation by non-cardiac drugs: lessons to be learned from recent experience. Eur J Clin Pharmacol 2000;56(1):1-18.

 

Correspondência:
Ely Lilly do Brasil Ltda
Anna Maria
Av. Morumbi, 8264
Cep. 04703-002 São Paulo, SP
Tel.: (0xx11) 5532-6075
E-mail:
costa_anna_maria@lilly.com

capa

arrow22c.giftopo

Volume 34, número 2

abr ·jun 2001