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Psiquiatria na prática médica  

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Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM

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Depressão no paciente epiléptico

 

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A neuropsiquiatria começa a trazer de volta para o âmbito da psiquiatria o tratamento dos distúrbios mentais de pacientes epilépticos, bem como pesquisas nessa área. Discutem-se no artigo os aspectos da depressão que ocorre com freqüência em pacientes epilépticos, abordando conceitos, classificação das crises e das síndromes epilépticas, dados epidemiológicos e a associação de epilepsias e depressão em pacientes adultos ambulatoriais e o tratamento concomitante dessa comorbidade.


Depressão no paciente epiléptico
Ivette Catarina J Kairalla e Carlos José R de Campos

   


Ivette Catarina J Kairalla

 

Ivette Catarina J Kairalla
Psiquiatra, mestre em neurociências e pós-graduanda em nível de doutorado do Departamento de Psiquiatria – Setor Proesq – da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina

 

Correspondência
Ivette Catarina Jabour Kairalla
Rua Coronel Diogo, 286 Aclimação
01545-000 São Paulo, Brasil
E-mail:
ivettek@osite.com.br

 

Quando se transferiu o enfoque da origem das crises epilépticas do âmbito místico para o de doenças naturais, inúmeros aspectos passaram a ser discutidos, seja relativos à epilepsia em si, ou no que diz respeito à sua associação a outros quadros mentais, particularmente a depressão.

Inicialmente abordada e tratada no campo da psiquiatria, passou para o domínio da neurologia após o surgimento do eletrencefalograma (EEG).1 Contudo, na atualidade, o campo da neuropsiquiatria, em acelerado desenvolvimento, começa a trazer de volta, para o âmbito da psiquiatria, pesquisas relativas aos distúrbios mentais associados às epilepsias, bem como a responsabilidade sobre o tratamento de pacientes com essa comorbidade.

As epilepsias têm sido estudadas em diversas instâncias: a) estruturas cerebrais (em nível anatômico, funcional, bioquímico e eletrofisiológico); b) sintomas somáticos e psíquicos decorrentes das descargas neuronais epilépticas; c) manifestações de cunho psicológico, inerentes ao ser humano e/ou reativos à sua condição clínica; d) o meio ambiente (físico, familiar e cultural) a que está sujeito o paciente.

Na atualidade, fala-se em “epilepsias” (no plural), já que diversas causas podem levar a esta condição anômala.

Deparamo-nos com altos índices de prevalência das epilepsias nos diversos países, menores nas nações desenvolvidas (0,4% a 0,5%) do que naquelas menos desenvolvidas (2,9% a 4%).2

Em julho de 1984, foi executada uma pesquisa domiciliar pela Liga Brasileira de Epilepsia, na zona urbana da cidade de São Paulo, para a detecção dos casos de epilepsia de características mistas de mundo desenvolvido e subdesenvolvido. Esse estudo3 mostrou uma taxa de prevalência de 11,9/1000 habitantes, ou seja, 1,19% da população estimada de habitantes em São Paulo naquele ano. Estimava-se, então, que pudessem existir 1.200.000 epilépticos no Brasil, naquela época.

Paralelamente, a par dos índices significantes de prevalência de depressão na população geral, a prevalência de doença depressiva interictal em pacientes epilépticos está entre 50% e 60%.4;5 Outros estudos mostraram um índice de até 75% de freqüência de depressão em grupos mistos de epilepsia e um aumento dos traços depressivos em paciente epiléptico quando comparado com controle normal.6;7

Quando os pacientes recebem o diagnóstico de epilepsia, alguns podem reagir com período de tristeza antes da adaptação, mas, após elaborar esta situação, tendem a voltar ao humor normal. Porém, há aqueles que desenvolvem um quadro depressivo com características de morbidade,8 quer como sintoma, ou como uma síndrome depressiva, ou mesmo como entidade nosológica associada, cabendo ao clínico diferenciar entre uma depressão de características orgânicas ou uma depressão reativa psicogênica, além daquela sem características patológicas. A depressão, então, pode ser concomitante ao quadro epiléptico,8 ou pode precedê-lo9 ou sucedê-lo.10 Há que se considerar, ainda, os episódios depressivos pós-ictais, que desaparecem em poucas horas.

Também torna-se necessário ao psiquiatra saber diagnosticar os diversos subtipos de quadro epiléptico, ou seja, o tipo de crise e o tipo de síndrome epiléptica, para avaliar a melhor conduta terapêutica.

Em 1981, a International League Against Epilepsy (ILAE) aprovou a forma revisada da Classificação Internacional das Crises Epilépticas e, em 1985, a Classificação Internacional das Epilepsias e Síndromes Epilépticas, revisada em 1989, em uso até a atualidade.11-13

A classificação das crises epilépticas é útil na orientação terapêutica dos quadros clínicos, enquanto a classificação das epilepsias e das síndromes epilépticas é utilizada na avaliação prognóstica das mesmas. As classificações das crises e das síndromes epilépticas estão descritas na Tabela.

As crises generalizadas correspondem às descargas epilépticas que envolvem ambos os hemisférios cerebrais simultaneamente desde o início da crise, enquanto nas crises parciais (ou focais) a atividade epiléptica está limitada a uma região do cérebro. A atividade epiléptica cerebral das crises parciais pode se difundir, tornando-se subseqüentemente generalizada.

Nas crises parciais simples, a consciência vigil mantém-se plenamente conservada, sendo o caráter das crises determinado pelo local de origem na córtex cerebral. Nas crises parciais complexas há um rebaixamento (perda parcial) do campo da consciência, ou turvação que implica num estado “onírico”, durante o qual o paciente pode ser levado a emitir respostas motoras ou verbais automáticas, mais ou menos apropriadas, das quais o paciente não tem lembrança posteriormente. Elas, em geral, se originam na região medial do lobo temporal, mas podem iniciar-se em outras estruturas límbicas ou em áreas corticais que se projetam nas áreas límbicas, podendo se acompanhar de “automatismos”.14 Tem-se descrito os seguintes tipos de automatismos: mastigatórios, da mímica, gestuais, deambulatórios e verbais.

Uma crise parcial simples pode preceder imediatamente uma crise parcial complexa ou uma crise generalizada e, nesse caso, é conhecida como “aura” ou “aviso”.

Diagnóstico
Para o diagnóstico orgânico das epilepsias, pode-se utilizar métodos funcionais (EEG, mapeamento cerebral, fRNM, SPECT e PET-Scan) e métodos anatômicos (TCC e RNM), além de uma correta anamnese.

Para o diagnóstico psíquico das depressões, há que se pesquisar, cuidadosamente dados de anamnese que detectem os aspectos psicológicos reativos e constitucionais do estado afetivo do paciente.

Cuidados investidos na relação médico-paciente, a fim de merecer a confiança e respeito do paciente, auxiliam na obtenção de dados de anamnese mais precisos, uma vez que o diagnóstico das crises epilépticas e da depressão dependem principalmente da capacidade de expressão verbal e de evocação dos pacientes para a descrição dos sintomas.

Os estudos mais recentes da literatura internacional sugerem que a depressão do paciente epiléptico ora adquire características de cunho biológico,15,16 ora se mostra associada a nítidos fatores desencadeantes de caráter psicossocial,8,17,18 o que também foi constatado num estudo desenvolvido para defesa de tese de mestrado na Unifesp/EPM.19

Kairalla & Campos (1996),20 estudando uma amostra de 33 pacientes adultos que apresentavam quaisquer dos tipos de crises parciais, registraram os seguintes tipos de transtorno de humor (depressão): 18 casos (54,54% da amostra) de distimia; dois casos de transtorno depressivo recorrente (episódio atual grave com sintomas psicóticos); dois casos de transtorno depressivo recorrente (episódio atual moderado); dois casos de outros transtornos recorrentes do humor (depressão grau leve); um caso de transtorno afetivo bipolar (episódio atual depressão grave, sem sintomas psicóticos); quatro casos de transtorno misto de ansiedade e depressão (grau leve); e quatro casos de reação depressiva prolongada. Foram registrados 11 casos (33,33%) com desejo de morrer, nove casos (27,27%) com idéia de suicídio e cinco casos (15,15%) de tentativa de suicídio, sendo que oito (24,24%) nunca desejaram a morte.

Variáveis como idade, sexo e ocupação (definida ou não) parecem influenciar o grau de depressão, enquanto tipos de drogas antiepilépticas em uso, duração da epilepsia e idade de início da epilepsia não mostram diferença significante em relação ao grau de depressão.

Por outro lado, os dados fenomenológicos registrados nesses pacientes podem ser agrupados em quatro tópicos: a) preconceitos e estigmas; b) desamparo e desesperança; c) dinâmica familiar; e d) mecanismos de adaptação. Cada um desses aspectos foi detalhadamente discutido,21 ressaltando-se aqui aqueles relativos aos mecanismos psicológicos de adaptação desses pacientes, freqüentemente precários. Assim, essas dificuldades mentais podem estar associadas a uma reação afetiva de caráter depressivo, pelas limitações de elaboração e de expressão verbal de seus conflitos.

À primeira vista, todos os pacientes parecem muito vulneráveis às críticas do ambiente, principalmente de seus familiares, e indefesos, possivelmente por falta de uma opinião própria mais elaborada, ou seja, de maior maturidade emocional. Outros, porém, quando conseguem acreditar um pouco mais em seus recursos físicos ou mentais e que, ao mesmo tempo, recebem apoio moral de seus familiares, conseguem um nível relativamente bom de adaptação social, diminuindo a importância que davam aos riscos e à sua imagem pública, além de reduzir a ansiedade, o que por si só pode diminuir a freqüência das crises. Isto vem apoiar a pressuposição da melhor e mais adequada sobrevivência daqueles com maior capacidade adaptativa.

Tratamento
Contrariando conceitos errôneos que ainda persistem na crença médica, a literatura científica atual mostra claramente que a noradrenalina e a serotonina funcionam também como neurotransmissores antiepilépticos,
22 além de ter efeitos antidepressivos.

Tanto em animais quanto em humanos, os antidepressivos tricíclicos desencadeiam crises quando em overdose. Porém, quando em doses baixas, essas drogas têm atividade anti-epiléptica.22 Assim também, os inibidores seletivos da recaptação da serotonina têm mostrado serem capazes de potencializar as drogas anti-epilépticas usuais e de terem, eles próprios, um efeito anti-epiléptico.23

Em função da interação das drogas medicamentosas, a prescrição deve basear-se, principalmente, nos níveis de concentração plasmática, mais do que no valor absoluto da dose ingerida.

Conclusão
Em conclusão, podemos considerar que o médico psiquiatra e qualquer outro profissional da saúde devem estar atentos e preparados para identificar e tratar o impacto que as epilepsias e a depressão causam na vida do paciente e no seu micro-ambiente.

Esses pacientes necessitam, assim, de uma adequada intervenção bio-psico-social, o que implica, portanto, num enfoque médico amplo e/ou num tratamento multidisciplinar.

Referências

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Volume 33, número 4

out · dez 2000

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