UNIFESP

Psiquiatria na prática médica  

Órgão Oficial do

Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM

editorial

artigo original

especial

atualização

agenda

instrução aos autores

equipe

outras edições

 

Correlação entre adaptação psicossocial à colostomia permanente e resposta psicológica ao câncer*

Correlation between psychosocial adjustment to permanent colostomy and psychological response to cancer

Luiz Carlos A Alves
Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do Hospital do Servidor Público Estadual “Francisco Morato de Oliveira”, São Paulo, SP

Resumo

Objetivo
O objetivo do trabalho é estudar as relações entre adaptação psicossocial à colostomia permanente por câncer colo-retal e padrões de resposta psicológica à neoplasia. A hipótese é que as características da acomodação ao estoma abdominal, para serem adequadamente compreendidas, não devem ser consideradas isoladamente, mas inseridas no contexto mais amplo representado pelo modo como o sujeito reage ao fato de ser ou de ter sido um doente de câncer.

Métodos
Trata-se de um estudo clínico-descritivo em que foram analisadas entrevistas semi-estruturadas repetidas com 22 colostomizados por adenocarcinoma de reto (operados pela técnica de Miles). Procurou-se estabelecer a estratégia utilizada para lidar com a neoplasia (classificadas como negação, aflição, estoicismo e enfrentamento), o quadro geral da adaptação psicossocial à mutilação física e uma correlação entre a resposta ao câncer e a resposta à colostomia.

Resultados
Observou-se que os doentes que negavam o câncer tenderam a queixar-se com exaspero do estoma, mesmo quando levavam uma vida praticamente sem restrições. Os que reagiram com aflição apresentaram uma tendência oposta, nitidamente minimizando as conseqüências da colostomia. Já os pacientes com estoicismo exibiram idêntica atitude de conformismo e resignação frente ao câncer e ao estoma, enquanto os que reagiram à neoplasia com enfrentamento mostraram um comportamento nitidamente prático e objetivo diante da deficiência física.

Conclusão
No manejo da relação médico-paciente colostomizado, o cirurgião não deve jamais esquecer o fato de estar lidando com pacientes primariamente cancerosos. Tal perspectiva pode ajudá-lo a compreender as marcadas diferenças de adaptação que são observadas nesses indivíduos.

Descritores
Colostomia, psicologia. Adaptação psicológica. Neoplasias retais, psicologia.

 

Abstract

Objective
To show that the characteristics exhibited in the psychosocial adjustment to permanent colostomy for colorectal cancer cannot be fully understood if considered individually. For them to beappropriately appreciated and handled, these characteristics should be part of a larger context, represented by the subject’s response to the fact that he/she is or was a cancer patient.

Methods
In this clinical study, semi-structured interviews with 22 colostomates for rectum adenocarcinoma (Miles’s technique) were analyzed. The strategy used to cope with the neoplasm (categorized as denial, affliction, stoicism and confrontation); the general picture of the psychosocial adjustment to physical mutilation; and a correlation between the psychological response to cancer and the adjustment to colostomy were assessed.

Results
Patients who denied having cancer tended to complain excessively of the stoma, even when they lived a life practically without restrictions. The ones that reacted with affliction presented behaved in an opposite way, trying to minimize the consequences of the colostomy. Patients who showed stoicism exhibited an identical conformist attitude in relation to the cancer and the stoma, while the ones who reacted with confrontation showed a quite pragmatic behavior to the physical handicap.

Conclusion
Regarding the management of the physician-colostomate patient relationship, the surgeon should be always aware that he/she is taking care primarily of  cancer patients. This perspective can help him or her to understand the accentuated differences in adaptation observed in those individuals.

Keywords
Colostomy, psychology. Psychological adaptation. Rectum neoplasia, psychology.

 

Introdução

Pacientes submetidos a colostomia permanente por câncer colo-retal requerem, com relativa freqüência, a atenção do psiquiatra com prática na assistência a doentes internados em hospitais gerais. No entanto, a literatura médica que trata dos aspectos psicológicos relativos à colostomia não leva suficientemente em conta que os indivíduos em questão são originalmente doentes de câncer. Ela se restringe, em geral, ao problema da colostomia em si.

Uma leitura atenta dessa bibliografia permite sua divisão em três categorias. Na primeira, os autores analisam as dificuldades de adaptação com base no significado que ânus, controle esfincteriano, fezes e flatos têm para os indivíduos operados.1-5 Na segunda, as pesquisas se voltam para a avaliação da qualidade de vida do colostomizado, comparando-a quer com a do período anterior à cirurgia,6-10 quer com a de pacientes cuja retirada do tumor preservou o esfíncter anal.11-14 Na terceira categoria, os trabalhos não diferenciam colostomizados por carcinoma e por patologias não neoplásicas15-18 ou colostomizados e ileostomizados.19

Isso poderia ser compreendido se pensarmos na histórica relevância, atribuída pela psicanálise, ao significado que ânus e controle dos esfíncteres têm na constituição da personalidade e na socialização do sujeito.20-23 No entanto, em se tratando de colostomizados, a relativa desconsideração da subjetividade implicada no convívio com a neoplasia leva à omissão de um aspecto primordial do esforço de adaptação à mutilação física – justamente o de acomodação à doença, cujo tratamento motivou a própria mutilação.

O objetivo do presente trabalho é tentar preencher essa lacuna. Ele procura mostrar, através de um estudo clínico-descritivo, que, em linhas gerais, o modo como muitos pacientes se acomodam à perda do esfíncter anal guarda estreita relação com o contexto mais amplo representado pela resposta psicológica ao fato de ser, ou de ter sido, um doente de câncer. Essa perspectiva ajuda a explicar as marcadas diferenças de adaptação observadas entre os colostomizados, o que é sempre mencionado na literatura e de conhecimento comum entre os cirurgiões colo-retais.

O presente estudo proporciona, também, um exemplo a mais de como a pesquisa psiquiátrica em hospital geral – uma das funções do que Lipowski, ao considerar uma subespecialidade da psiquiatria, denomina psiquiatria de ligação e consulta24 – pode auxiliar no aprimoramento da prática médica.

Métodos

Foram estudados 22 pacientes, 10 homens e 12 mulheres, operados de adenocarcinoma de reto pela técnica da amputação abdominoperineal do reto (cirurgia de Miles). Os pacientes eram inscritos no Núcleo de Atendimento ao Ostomizado do Hospital do Servidor Público Estadual “Francisco Morato de Oliveira”, em São Paulo, dirigido por assistentes sociais. A escolha levou em conta a facilidade de locomoção e a disponibilidade para entrevistas repetidas. Como o estudo requeria, da parte do entrevistado, uma predisposição para o relato de impressões e opiniões íntimas, foram excluídos indivíduos que, pela experiência das assistentes sociais, supostamente se mostrariam avessos a um contato psicológico próximo.

A média de idade dos homens foi de 66,0 anos (variação de 52 a 83 anos) e, a das mulheres, de 62,3 anos (30 a 83 anos). O tempo médio de colostomia nos homens foi de 5,6 anos (1 a 14 anos); nas mulheres, de 4,75 anos (1 a 25 anos).

O método utilizado foi o de entrevistas semi-estruturadas repetidas. A maioria das entrevistas iniciais ocorreu entre agosto e setembro de 1995. A maior parte foi gravada, com consentimento do paciente, e depois transcrita. No total, foram efetuadas 74 entrevistas (média de 3,3 por paciente), com um tempo de trabalho aproximado de 94 horas.

A reação ao câncer foi classificada com base em uma adaptação das categorias empregadas por Greer, Morris e Pettingale.25 Embora esses autores as utilizem para o câncer de mama, sua transposição para casos com malignidade em outras localizações é relativamente simples. Elas são supostas mutuamente excludentes e foram chamadas de negação, estoicismo, aflição e enfrentamento.

Considerou-se como resposta de negação, quando o sujeito afirmava desconhecer seu diagnóstico ou os motivos da cirurgia; evitava, de modo manifesto, abordar o tema do câncer; e havia exteriorizado marcada desconsideração pelos riscos da doença, mormente nos casos em que a cirurgia foi protelada por considerável período. A avaliação de estoicismo foi feita se sobressaía uma atitude conformista e passiva diante da enfermidade. A doença era encarada como uma fatalidade, como uma obra inelutável do destino, frente a qual nada restava fazer, senão resignar-se. Como aflição foram classificados os casos em que as preocupações relativas ao câncer monopolizavam o discurso do indivíduo, ou quando o assunto da doença despertava nele um afeto manifestamente angustiante. Já a reação de enfrentamento foi considerada quando havia uma história de busca ativa de informações sobre o diagnóstico, a cirurgia e as possibilidades terapêuticas, com o sujeito se contrapondo à doença com decidido “espírito de luta”.

Na avaliação da adaptação à colostomia, procurou-se investigar as áreas de trabalho, os relacionamentos familiar e social, as saídas de casa e a atividade sexual. Buscou-se verificar, em especial, como o paciente se sentia intimamente frente à deficiência física, qual a intensidade de possíveis sentimentos de inconformismo ou, ao contrário, a sinceridade de eventuais afirmações de aceitação.

A presença ou a ausência de correlação entre a reação ao câncer e as características da adaptação ao estoma foi estabelecida com base na interpretação dos dados das entrevistas e constitui a contribuição teórica deste trabalho. Interpretação aqui é utilizada no mesmo sentido que se faz nas disciplinas históricas. Frente a um período ou evento histórico que se queira interpretar, elege-se as características que se consideram como dominantes, com relação as quais as outras vêm situar-se num plano secundário. É como se fala, por exemplo, de interpretação materialista da história, quando se aceitam como fundamentais os aspectos materiais (ou econômicos) da própria história. No presente trabalho, considerou-se como primário a resposta ao câncer e como subordinado as particularidades da adaptação à colostomia.

Resultados

Os resultados estão resumidos na Tabela. Nela são descritas, em poucas palavras, as características mais significativas da resposta ao câncer – conforme a classificação em aflição, negação, estoicismo e enfrentamento – e da adaptação ao estoma. Está também assinalado a conclusão da interpretação, isto é, a presença ou ausência de correlação entre ambas as situações.

Em três dos pacientes que reagiram ao câncer com aflição as entrevistas revelaram que se mostravam tão absorvidos com a doença que praticamente não falavam da colostomia (casos 1, 10 e 15). Ao se referirem a ela, o que se destacava é que tendiam sempre a minimizar seus inconvenientes, alguns de modo surpreendente. Um dos pacientes, por exemplo, comparou o estoma a mero “acessório” corporal, similar à dentadura ou óculos (caso 1).

Já em oito dos dez pacientes classificados com resposta de negação, a atenção estava, ao contrário do grupo anterior, desviada de uma maneira ou de outra da doença e concentrada no estoma. Nada, ou quase nada, era dito sobre a causa da cirurgia. Assim, quatro pacientes se queixavam contínua e exageradamente da colostomia (casos 6, 13, 19 e 21), embora levassem uma vida de muito poucas restrições e estivessem em condições de saúde bastante satisfatórias. Dois outros se compraziam em exibir, prazerosamente, o estoma para parentes e conhecidos (casos 8 e 17). O sétimo (caso 5) não tinha a atenção dirigida propriamente para a colostomia, mas para as sensações vinculadas a ela, enquanto o oitavo estava tão obcecado pelo estoma que levava uma vida extremamente retraída e isolada (caso 2).

Quanto aos pacientes que reagiram ao carcinoma com estoicismo, com exceção de um deles (caso 4), todos exibiram uma resposta análoga à colostomia. Prevaleceu neles idêntico conformismo e resignação, tanto diante da doença quanto da mutilação física. Câncer e colostomia eram vistos como uma fatalidade, obra do destino, frente aos quais nada cabia fazer, senão passivamente aceitar e conformar-se.

Por último, nos que responderam ao câncer com enfrentamento (casos 9, 11 e 16), as entrevistas mostraram que nenhum deles alimentava ressentimento pela mutilação e nem se sentia particularmente oprimido por sentimentos de vergonha e estigma. Os três retornaram rapidamente ao trabalhar, mantinham-se economicamente independentes dos familiares e tinham mobilidade física normal. Falavam da colostomia com isenção e objetividade, mostrando-se práticos em suas atividades diárias e observando a justa medida das limitações físicas.

Discussão

A desconsideração da reação psicológica ao câncer na acomodação à colostomia se destaca facilmente na análise da literatura. Nos trabalhos que reúnem colostomizados por câncer e por patologias não cancerosas, ou colostomizados e ileostomisados por causas diversas, a própria maneira de agrupar os pacientes evidencia que seus autores não acham que o diagnóstico de neoplasia seja relevante para o estudo da adaptação ao estoma.

O mesmo acontece nos trabalhos de inspiração psicanalítica. Neste sentido, o artigo de Sutherland, Orbach, Dyk e Bard,1 muito citado na literatura, é paradigmático. Embora entrevistem detalhadamente 57 colostomizados por adenocarcinoma de reto ou reto-sigmóide, os autores não conferem qualquer relevância às repercussões do câncer no psiquismo dos doentes. Eles explicam o que consideram fato estabelecido – fatores psicológicos fazem o “invalidismo” provocado pela colostomia ultrapassar as limitações impostas pela cirurgia – unicamente no significado, crenças e valores, conscientes ou inconscientes, vinculados a limpeza e controle esfincteriano. Restringem, assim, a compreensibilidade da adaptação à colostomia ao estresse pela mudança na forma e no funcionamento do corpo, sem nada dizer sobre a causa de tal alteração.

Quanto aos autores que comparam a qualidade de vida antes e depois da colostomia, a omissão do precedente do câncer certamente contribui para se chegar a conclusões bastante díspares. Druss, O’Connor, Prudden e Stern7 e Druss, O’Connor e Stern,8 por exemplo, não vêem maiores problemas na reabilitação do colostomizado. Já Rubin e Devlin9 e Devlin10 se posicionam totalmente contrários à cirurgia. Eles afirmam que a vida com estoma é um desastre e aconselham o cirurgião a evitar a “abominável colostomia”.

Idêntica desigualdade se constata nos que comparam a qualidade de vida de operados de carcinoma retal com e sem a preservação do esfíncter anal. Assim, MacDonald & Anderson12 destacam o alto custo psicológico e social do estoma, assinalando que colostomizados são mais propensos a estar deprimidos, socialmente isolados e estigmatizados do que pacientes que tiveram o ânus mantido. Grundmann, Said e Krinke13 também acharam que a qualidade de vida era melhor após resseção do que após excisão do reto. A excisão resultou em sentimentos de inferioridade, em depressão e em distúrbios sexuais.

No entanto, para Wirsching, Drüner e Hermann11 a comparação de colostomizados com não colostomizados não é desapontadora, havendo razões para se supor que os primeiros podem levar vida normal. Embora visitassem amigos menos freqüentemente (contato ativo) e fossem menos ao cinema e ao teatro (lugares onde há proximidade com pessoas e impossibilidade de se afastar por longo período), os colostomizados não recebiam menos visitas (contato passivo) e não iam menos a restaurantes.

O que se pode perguntar é até aonde nos leva a questão de saber se a adaptação à colostomia é mais ou menos favorável. Dado que a mutilação física é uma imposição que não oferece alternativas, nada resta ao sujeito senão adaptar-se. Caberia ao médico ajudá-lo a achar a melhor acomodação possível, com um mínimo de sofrimento. Mas esta acomodação não pode logicamente estar desvinculada da maneira do sujeito lidar com o câncer, visto que a modificação corporal é uma exigência do tratamento da doença. É o que procura mostrar a análise dos nossos resultados.

Nos pacientes que reagiram ao câncer com aflição, a correlação com a resposta à colostomia (minimização) foi estabelecida com base na seguinte interpretação: ao comparar a desmedida ameaça que subjetivamente pressentiam na doença com o prejuízo do estoma, os indivíduos eram levados a desconsiderar toda a relevância do último. Frente ao intenso medo da malignidade, a colostomia perdia qualquer importância. Desse modo, o que à primeira vista poderia ser considerada uma adaptação bem sucedida, pois os sujeitos não se queixavam do estoma, na realidade era reflexo da reação à neoplasia.

Por outro lado, nos oito pacientes com resposta ao câncer de negação em que a correlação com a adaptação ao estoma foi considerada presente, o desvio da atenção para a colostomia – quer pela sobrevalorização das queixas, pela sexualização do estoma, pelo interesse hipocondríaco ou pelo retraimento social – guardava, segundo a interpretação utilizada, estreita correspondência com a estratégia de lidar com a doença. Enquanto se mantinham preocupados com o estoma, os sujeitos conservavam permanentemente afastados da consciência os pensamentos relativos à neoplasia.

Assim, a aparente não-adaptação ao estoma desses indivíduos, mormente nos que se queixavam excessivamente dele, poderia ser considerada antes uma conseqüência necessária do estilo de reação à doença do que uma real intolerância à colostomia.

Já nos pacientes com resposta ao câncer de estoicismo, a correspondência com a adaptação ao estoma foi estabelecida por uma interpretação mais linear. Baseou-se na lógica de que quem pode mais pode o menos. Se conseguiam manter-se impassíveis diante do tumor, com maior razão ainda se mostrariam resignados com a seqüela da sua retirada cirúrgica. Uma vez tratados, da maioria desses indivíduos não se poderia esperar outra coisa senão aceitação e conformismo pela mutilação sofrida.
Quanto aos sujeitos que responderam ao câncer com enfrentamento, o caráter funcional e prático adquirido pela adaptação ao estoma foi explicado do modo como se segue. É lícito supor que a atitude mental adotada diante da doença proporcionou condições para a aquisição de um conhecimento racional e eficiente do conceito de malignidade, levando o sujeito a concluir que a cirurgia era condição sine qua non para a sobrevivência. Uma tal elaboração da realidade, se bem sucedida, pode servir para controlar a angústia e contrapor-se a preconceitos e temores infundados relacionados ao câncer, dando lugar a comportamento positivo e eficiente no tocante à deficiência física. Nestes casos, então, o padrão de adaptação ao estoma poderia ser visto como um desdobramento quase natural da resposta à neoplasia.

Conclusão

Admitindo-se como válidas as interpretações formuladas, em 19 dos 22 casos analisados foi possível estabelecer a correlação entre a resposta ao câncer e o modo de adaptação ao estoma. Poder-se-ia, portanto, concluir que a acomodação à colostomia não deve ser avaliada como se a cirurgia tivesse sido realizada num vazio diagnóstico. As variações nos padrões adaptativos podem antes refletir a estratégia de lidar com o câncer, do qual o estoma é conseqüência, e não a mera adaptação à alteração corporal.

Quanto aos casos em que não se demonstrou a esperada correlação, duas hipóteses podem ser aventadas. A primeira é de uma falha na perspicácia do observador, visto que dependeu dele a interpretação da correspondência entre as respostas.

A segunda é que a classificação das reações psíquicas teria subclassificações, precisando haver maior precisão no agrupamento dos sujeitos. Isso é mais fácil de perceber nos casos de negação, nos quais se notam claramente formas distintas de negar a doença.Todavia, o que é evidente por si, é que o esforço mental do colostomizado é necessariamente duplo. Antes de se acostumar à perspectiva de viver com uma abertura no abdome para eliminação de fezes, ele tem de aceitar de algum modo a idéia de sofrer de neoplasia. Por essa razão, a atitude psíquica que adota diante do fato de ser, ou ter sido, doente de câncer, é determinante para o sentido que o estoma adquire em sua existência.

Tabela – Sínteses da resposta ao câncer (e sua classificação) e da adaptação à colostomia, assinalando a presença ou a ausência de correlação entre ambas

No

Resposta ao câncer

Síntese da adaptação à colostomia

Correlação

Aflição

 

 

1

Angústia e monopolização da atenção na doença

Banalização: “É só questão de estética, como dentadura ou óculos”

Presente

10

Medo intenso da doença, com sentimentos depressivos

Desvalorização do dano: “É apenas outro modo de saída das fezes”

Presente

15

Ansiedade e intensa inquietação ao falar sobre a doença

Exibição do estoma e vulgarização dos inconvenientes

Presente

18

Predomínio de pensamentos sobre doença e morte

Não fala do estoma. Até “esquece que tem colostomia”

Ausente

Negação

 

 

2

Desconsideração da gravidade. Acha que a cirurgia era evitável

Retraimento, sentimentos de desvalia e vergonha. Oculta o estoma

Presente

5

Evitou saber sobre a doença. Pensa que o médico não foi sincero

Discurso voltado para as sensações do corpo. Esconde o estoma

Presente

6

Denegação total. Em 12 anos nunca quis saber o diagnóstico

Queixas múltiplas do estoma e inconformidade com a cirurgia

Presente

6

Negação maniatiforme: a doença nunca é citada nas entrevistas

Ganho de privilégios em casa. Prefere a situação atual à anterior

Presente

13

Desconsideração do perigo. Adiou a cirurgia por 6 anos

Dificuldade em aceitar as poucas restrições físicas. Lamenta a sorte

Presente

14

Descrédito do saber e autoridade médica. Tentou antes homeopatia

Acomodação progressiva, após início de longa inatividade

Ausente

17

Simula desconhecer o diagnóstico, incentivado pela família

Atitude pueril. Exibe a foto da colostomia sem qualquer pudor

Presente

19

Omissão completa da doença no relato de seu estado

Dramatização das dificuldades. Tempo excessivo na irrigação

Presente

21

Completa abolição da idéia da doença durante as entrevistas

Amplo predomínio das queixas do estoma. Marcado isolamento

Presente

22

Abrandamento da ameaça via alteração da denominação da doença

Restabelecimento das atividades. “Não se preocupa" com o estoma

Ausente

Estoicismo

 

 

3

Conformismo. Maior apego a práticas religiosas

Não “blasfemou” o estoma. Manteve o contato social e autonomia

Presente

4

Aceitação passiva da cirurgia. Evita informações sobre a doença

Acha o estoma “terrível”. Decepção com sua condição de vida

Ausente

7

Admissão velada da neoplasia, com resignação

Conformismo: “Até o Papa passou por isso”. Invalidismo incipiente

Presente

12

Aceitação resignada da doença e da necessidade da operação

Indiferença: “Não esquentei a cabeça”. Dependência econômica

Presente

20

Percepção da doença como castigo. Fatalismo e resignação

Buscou ser forte. Nunca se lamentou ou pediu ajuda à família

Presente

Enfrentamento

 

 

9

Ciente do diagnóstico e do alcance do tratamento efetuado

Consciência das limitações e das possibilidades. Controle da ansiedade

Presente

11

Conhecimento dos riscos. Interesse pelo tratamento

Faz piadas do estoma. Observa a justa medida da limitação física

Presente

16

Interesse em conhecer o diagnóstico e os recursos terapêuticos

Não se sente discriminada. Fala com imparcialidade da colostomia

Presente

 

Agradecimento

A Antonio Cláudio de Godoy, diretor do Serviço de Gastroenterologia Cirúrgica do Hospital do Servidor Público Estadual “Francisco Morato de Oliveira”, de São Paulo, pelo imprescindível incentivo e apoio durante a realização deste trabalho.

Referências

  1. Sutherland AM, Orbach CE, Dyk RB, Bard M. The psychologic impact of cancer and cancer surgery I. Adaptation to the Dry Colostomy. Preliminary Report and Summary of Findings. Cancer 1952;5:857-72.
  2. Orbach CE, Bard M, Sutherland AM. Fears and defensive adaptations to the loss of anal sphincter control. Psychoanal Rev 1957;44:121-75.
  3. Meyer BC, Lyons AS. Rectal ressection: psychiatric and medical management of its sequelae – report of a case. Psychosom Med 1957;19:152-7.
  4. Milano F, Munegato G, Fasolo F, Gracco L, Bortoletto A, Zotti EF. Psychoanalytic evaluation of a case study: does the colostomy reproduce the problems of childhood “anal phase”? J Enterostomal Ther 1987;14:240-2.
  5. Leão PHS. The post-ostomy syndrome. Arq Bras Cir Dig 1990;5:27-8.
  6. Decannière D, Pector JC, Gerard A. Colostomie définitive et qualité de la vie. Acta Chir Belg 1987;87:355-7.
  7. Druss RG, O’Connor JF, Prudden JF, Stern LO. Psychologic response to colectomy. Arch Gen Psychiat 1968;18:53-9.
  8. Druss RG, O’Connor JF, Stern LO. Psychologic response to colectomy II. Arch Gen Psichiat 1969:20:419-27.
  9. Rubin GP, Devlin HB. The quality of life with a stoma. Br J Hosp Med 1987;38:300-3.
  10. Devlin HB. Colostomy: past and present. Ann R Coll Surg Engl 1990;72:175-6.
  11. Wirsching M, Drüner HU, Hermann G. Results of psychosocial adjustment to long-term colostomy. Psychother Psichosom 1975;26:245-56.
  12. Macdonald LD, Anderson HR. The health of rectal cancer patients in the community. Eur J Surg Oncol 1985;11:235-9.
  13. Grundmann R, Said S, Krinke S. Quality of life after rectal resection or extirpation. A comparison using different measurement parameters. Dtsch Med Wochenschr 1989;114:453-7.
  14. Schaube J, Scharf P, Herz R. Lebensqualitat nach karzinombedingter rektumexstirpation [The quality of life after extirpation of the rectum for carcinoma]. Dtsch Med Wochenschr 1996;121(6):153-7.
  15. Thomas C, Maddes F, Jehu D. Psychosocial morbidity in the first three months following stoma surgery. J Psychosom Res 1984;28:251-7.
  16. Thomas C, Maddes F, Jehu D. Psychological effects of stomas – I. Psychosocial morbidity one year after surgery. J Psychosom Res 1987;31:311-6.
  17. Thomas C, Maddes F, Jehu D. Psychological effects of stomas – II. Factors influencing outcome. J Psychosom Res 1987;31:317-23.
  18. Thomas C, Turner P, Maddes F. Coping and the outcome of stoma surgery. J Psychosom Res 1988;32:457-67.
  19. Dlin BM. Emotional aspects of colostomy and ileostomy. Psychosomatics 1978;19:214-8.
  20. Freud S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. VII. Rio de Janeiro: Imago, 1972. p. 121-250.
  21. Freud S. As transformações do instinto exemplificadas no erotismo anal (1917). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1972. p. 155-66.
  22. Abraham K. Contributions to the theory of the anal character. In: Douglas Bryan, Alix Strackey, tradutores. Selected papers on psychoanalysis. Londres: Hogarth Press; 1927. p. 870-92.
  23. Jones E. Anal erotic character traits. In: Papers on psychoanalysis. 5a edição. Londres: Balliere, Tyndall e Cox; 1948. p. 413-37.
  24. Lipowski ZJ. Consultation-liaison psychiatry: the first half century. Gen Hosp Psychiatry 1986;8:305-15.
  25. Greer S, Morris T, Pettingale KW. Psychological response to breast cancer: effect on outcome. Lancet 1979;ii:785-7.

Correspondência:

Luiz Carlos Aiex Alves
Hospital do Servidor Público Estadual “FMO”
Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica
R. Pedro de Toledo, 1.800
04039-901 São Paulo, SP, Brasil

capa

arrow22c.giftopo

Volume 33, número 4

out ·dez 2000

Última atualização: