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Psiquiatria na prática médica  

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Centro de Estudos - Departamento de Psiquiatria - UNIFESP/EPM

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O mito da cefaléia psicogênica
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A cefaléia acompanha o ser humano ao longo de sua existência. É tão freqüente que não a experimentar pode ser sinal de anormalidade. Os conhecimentos da neuroanatomia, neuroquímica, neurofisiologia e outros indicam que fatores psíquicos, como etiologia das cefaléias, não resistem à crítica científica. O sintoma cefaléia necessita de substrato físico para a sua manifestação.  Na classificação da Sociedade Internacional de Cefaléia, a cefaléia psicogênica e sinônimos são chamadas de cefaléias do tipo tensão.


O mito da cefaléia psicogênica
Deusvenir de Souza Carvalho

   


Deusvenir de Souza Carvalho

 

Deusvenir de Souza Carvalho
Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Universidade Federal de São Paulo/EPM

 

Correspondência
Deusvenir de Souza Carvalho
Rua Pedro de Toledo, 980
conj.33 – Vila Clementino
04039-002 São Paulo, SP
E-mail:
deusveni@provida.org.br

 

Dor é um sintoma freqüentemente experimentado pelos seres humanos desde tempos remotos. Alguns dos últimos achados arqueológicos atestam um grande número de fraturas nos esqueletos humanos, algumas mal consolidadas, implicando intenso desconforto para aqueles indivíduos nômades e caçadores, ao longo de sua vida.1

Cefaléia ou dor de cabeça também é um sintoma freqüente, com registros indicativos de acompanhar a existência do ser humano neste planeta. Foram evidenciadas trepanações em crânios neolíticos datando de 7000 a.C., indicativas de procedimentos neurocirúrgicos dolorosos.2 Esses procedimentos, além de serem para o alívio da cefaléia, podem ter sido feitos para livrar o indivíduo do demônio e de maus espíritos.2

Estudos epidemiológicos recentes apontam para a prevalência do sintoma da cefaléia, ao longo da vida, para 69% a 93% de indivíduos do sexo masculino e 94% a 99%, do feminino.3

Referências a dores de cabeça podem ser encontradas desde 3000 anos a.C.,4 acreditando-se que a mais antiga possa ser a lida em um poema épico sumeriano, como sugere Edmeads.5 O papirus de Ebens, do Egito antigo, uma prescrição para aliviar enxaqueca, neuvralgias e cefaléias pós-trauma, data de 1200 a.C. Os egípcios acreditavam que os deuses poderiam curar a dor de cabeça e a orientação do papirus incluía relaxamento, massagem e compressas quentes ou frias.6 As cefaléias são explicitadas na literatura de Platão, Timothy Bright, Shakespeare, Hildegarde. Na literatura médica, são encontradas descrições desde os tempos de Hipócrates (400 a.C.), Celsus e Galeno (200 a.C.), Thomas Willis (1683), Tissot (1783), Gowers (1888), até o século passado, com Deyl e Spitzer e, no atual, com Stephen King.6

Em 1660, William Harvey recomendou trepanação para um paciente com enxaqueca intratável.7 Ainda hoje, como no Egito antigo, o relaxamento,massagens e compressas podem ser utilizadas para obtenção de alívio do sintoma.8,9 Isso pode, aparentemente, indicar fatores causais psíquicos. No entanto, a evolução do conhecimento científico não tem admitido o fator etiopatogênico psíquico para cefaléia. Indubitavelmente, aspectos psíquicos normais ou anormais podem ser acompanhantes, agravantes, desencadeantes, perpetuantes e mesmo amenizantes das cefaléias.

As dores de cabeça, como se entende na neurologia e cefaliatria atual, precisam de base física para se manifestarem. No nível central (córtex e tronco cerebral), mecanismos neuroquímicos levam a queda do limiar e, no nível periférico, (n. trigêmeo e raízes cervicais) o incremento de estímulos pode levar a percepção nociceptiva de cefaléia10 (Figura).

 

Figura - Ilustração de como a interação dos mecanismos centrais e periféricos pode levar ao aparecimento da cefaléia tipo tensão episódica e à transformação progressiva em cefaléia tipo tensão crônica (adaptação da figura de Olesen & Schoenen10).


Na literatura especializada, o termo cefaléia psicogênica aparece na classificação de 1962 para definir a cefaléia de pacientes em que aspectos psicológicos anormais eram proeminentes.
11 Essa classificação foi substituída, em 1988, por uma classificação e critérios diagnósticos das cefaléias neuralgias cranianas e dor facial,12 um verdadeiro tratado de bom senso, tendo como base a clínica, a etiopatogenia e a fisiopatologia das dores do segmento cefálico (Tabela). Enumera o grupo das cefaléias primárias nos itens de 1 a 4 e o das cefaléias secundárias ou sintomáticas, nos de 5 a 11, as neuralgias no item 12, restando o item 13 para as cefaléias não-classificáveis. Conceituando esses grupos, as cefaléias primárias são aquelas onde o sintoma “cefaléia” é o principal na doença ou síndrome e, no caso das secundárias ou sintomáticas, a doença ou síndrome é outra, onde uma das manifestações é o sintoma “cefaléia”.

Tabela - Principais itens e subitens da cefaléia tipo tensão, da Classificação da “International Headache Society” de 1988.12

Cefaléias primárias:

    1 – Enxaqueca (ou migrânea)

    2 – Cefaléia tipo tensão

      2.1 – Cefaléia tipo tensão episódica

        2.1.1 – Cefaléia tipo tensão episódica associada a distúrbio muscular pericraniano

        2.1.2 – Cefaléia tipo tensão episódica não associada a distúrbio muscular pericraniano

      2.2 – Cefaléia tipo tensão crônica

        2.2.1 – Cefaléia tipo tensão crônica não associada a distúrbio muscular pericraniano

        2.2.2 – Cefaléia tipo tensão crônica não associada a distúrbio muscular pericraniano

    3 – Cefaléias em salvas e hemicrânia paroxística crônica

    4 – Cefaléias diversas não associadas a lesões estruturais

Cefaléias secundárias ou sintomáticas:

    5 – Cefaléia associada a trauma de crânio

    6 – Cefaléia associada a doenças vasculares

    7 – Cefaléia associada a outros distúrbios intracranianos não-vasculares

    8 – Cefaléia associada a substâncias ou a sua retirada

    9 – Cefaléia associada à infecção não cefálica

    10– Cefaléia associada a distúrbio metabólico

    11– Cefaléia ou dor facial associada a distúrbio do crânio, pescoço, olhos, orelhas, seios paranasais, dentes ou a outras estruturas faciais ou cranianas

Neuralgias

    12 – Neuralgias cranianas, dor de tronco nervoso e dor de deaferentação

    13 – Cefaléia não-classificável


A nomenclatura cefaléia psicogênica e toda a sua sinonímia, tais como cefaléia de contração muscular, cefaléia de tensão, cefaléia psicomiogênica, cefaléia do estresse, cefaléia comum, cefaléia essencial, cefaléia idiopática e mesmo aquela que os pacientes referem-se como “cefaléia normal”, tornou-se obsoleta e essas devem enquadrar-se no título mostrado no item 2, da Tabela.

Essa classificação foi precedida de uma preliminar proposta de classificação e critério diagnóstico para as desordens de cefaléia, neuvralgias cranianas e dor facial, em 1987. Nesta proposta, estavam enumerados 14 itens dos principais grupos de cefaléias. Destes, foi retirado somente o item 13 e seus sub-itens 13.1 e 13.2, que se referiam, respectivamente: cefaléia psicogênica, cefalalgia conversiva e cefaléia paranóide

Essa classificação foi apresentada no III Congresso da Sociedade Internacional de Cefaléia, que aconteceu em Florença, na Itália, em 1987. Foi proposta pelos membros do comitê, chefiados por Jes Olesen, neurologista dinamarquês, e o item 13 foi retirado por não resistir às críticas feitas por mais de duas centenas de eminentes cefaliatras internacionais presentes.

 

Referências

  1. Giovannetti A. Dor na psicanálise. Percurso 2000;25:135-7.
  2. Lions A, Petrucelli RJ. Medicine: an illustrated history. New York: Harry N. Abrams, Inc. Publishers; 1978.
  3. Rasmussen BK, Lipton RB. Epidemiology of headache. In: Olesen J, Tfelt-Hansen P, Welch KMA, eds. The Headaches. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2000. p.17-24.
  4. Alvarez WC. Was there sick headache in 3000 BC? Gastroenterology 1945;5:524.
  5. Edmeads J. The treatment of headache: a historical perspective. In: Galagher RM, editor. Drug therapy for headache. New York: Marcel Dekker Inc;1990. p.1-8.
  6. Silberstein SD, Lipton RB, Goadsby PJ, eds. Headache in clinical practice. Oxford: Isis Medical Media; 1998. p. 219.
  7. Critchley M. Migraine: from Cappadocia to Queen Square. In: Smith R, editor. Background to migraine. Vol.1. London: Heineman; 1967.
  8. Drummond PD, Holroyd KA. Psychological modulation of pain. In: Olesen J, Tfelt-Hansen P, Welch KMA, editors. The Headaches. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2000. p.217-21.
  9. Holroyd KA, Martin PR. Psychological treatment of tension-type headache. In: Olesen J, Tfelt-Hansen P, Welch KMA, editors. The Headaches. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins 2000. p. 643-50.
  10. Olesen J, Schoenen J. Syntesis of tension-type headache mechanisms. In: Olesen J, Tfelt-Hansen P, Welch KMA, editors. The Headaches. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 2000. p. 615-18.
  11. Ad Hoc Committee on Classification of Headache: classification of headache. JAMA 1962;178:717-8.
  12. International Headache Society. Headache Classification Committee. Classification and diagnostic criteria for headache disorders, cranial neuralgias and facial pain. Cephalalgia 1988;8(Suppl 7):1-96.

 

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Volume 34, número 1

jan ·mar 2001

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