01. Uma história
emocionante: a pesquisa que leva ao prêmio Nobel
Robert
Furchgott ganhou o prêmio Nobel de Medicina 1998,
por seus trabalhos que levaram à descoberta do
importante papel do óxido nítrico em nosso
organismo, inclusive no sistema nervoso central.
Esta caminhada científica foi acompanhada muito
de perto, pelo casal Aron e Neyde Jurkiewicz, ambos
professores de Farmacologia da UNIFESP/EPM (Universidade
Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina).
O Prof. Aron Jurkiewicz teve a gentileza de escrever
para o nosso Boletim esta pequena nota a respeito:
“O escritor Horace Walpole, em seu conto intitulado
“The three princes of Serendip”, criou o tempo “serendipity”,
para descrever a aptidão que tinham seus três
personagens da ilha de Serendip, que é o atual
Sri Lanka, em fazer descobertas ao acaso. A história
recente dos descobridores do papel fisiofarmacológico
do óxido nítrico, cujo principal envolvido
é Robert Furchgott, ganhador do Prêmio
Nobel de Medicina de 1998, tem todas as características
de “serendipity”. Tive a sorte, juntamente com Neide
Hyppolito Jurkiewicz, de poder trabalhar com Furchgott,
na Universidade Estadual de Nova York, no Brooklyn,
nos anos 1972-1973. Estudávamos os receptores
beta-adrenérgicos e o modo pelo qual a interação
de drogas com esses receptores era alterada por um fenômeno
conhecido por captação extra-neuronal,
ainda pouco investigado naquela ocasião. Para
esses experimentos, usávamos tiras de traquéia,
que se relaxam por ação da isoprenalina,
salbutamol e de outros agonistas beta-adrenérgicos.
Algumas vezes, chegamos a usar tiras de aorta, que também
se relaxavam por ação dos agonistas beta.
Esses experimentos eram muito simples. O único
problema técnico é que a traquéia
e a aorta só se relaxavam se fosse produzido
antes um tonus com acetilcolina ou com outro agonista
colinérgico como o carbacol. Nossa volta ao Brasil
não impediu que continuássemos mantendo
contato não somente com Furchgott, mas também
com os farmacologistas que naquela época trabalhavam
em seu Departamento, como Kirpekar, Kao, Arun e Teruna
Wakade, Walter Dixon, Odd Steinslad e Antonio Garcia,
que é hoje catedrático na Universidade
Autônoma de Madrid e líder de um grupo
com o qual mantemos estreita colaboração
científica. Em certa ocasião, nos
idos de 1978, soubemos que David, um técnico
de Furchgott, ao montar uma preparação
de aorta para o estudo de receptores beta-adrenérgicos,
verificou que o carbacol, ao invés de produzir
contração, produzia relaxamento. Pensou-se
logo em algum erro e, após exaustivas repetições,
Furchgott descobriu que as contrações
só eram obtidas quando se retirava a camada de
células endoteliais da aorta; quando essas células
eram preservadas, o carbacol ou a acetilcolina produziam
relaxamento, o que levou o pesquisador a propor, em
1982, que a acetilcolina liberava, do endotélio,
uma substância inibitória, que chamou de
Fator Relaxante Derivado do Endotélio, que ficou
conhecido por sua abreviação inglesa EDRF.
Em uma revisão histórica, intitulada “The
Discovery of Endothelium-Dependent Relaxation” publicada
na revista Circulation (vol. 87, supl. V, p. 3-8, 1993),
Furchgott descreveu com minúcias estes experimentos
iniciais. Nessa revisão, resumiu também
alguns de nossos experimentos com receptores beta-adrenérgicos,
referidos acima. Em 1984, Furchgott passou alguns
dias em nosso laboratório, na ocasião
em que Antonio Garcia também se encontrava na
Escola Paulista de Medicina. Lembro-me de um fim de
semana em meu sítio, quando sentados na varanda,
ouvíamos Furchgott descrever despretenciosamente
seus últimos experimentos. Falou de resultados
de seus colaboradores John Zawadzki, Peter Cherry, Desmigarao
Jothianandan, Willian Marty e da brasileira Maria Helena
Catelli de Carvalho, que estavam ajudando a desvendar
a natureza desse fator relaxante. E o bate-papo continuava,
regado a caipirinha, sem que ninguém, talvez
com exceção de Furchgott, percebesse o
alcance desses resultados. Jamais poderíamos
imaginar que estávamos vivendo o delineamento
do caminho que levaria ao Prêmio Nobel. Em
1986, os grupos de Vanhoutte e de Moncada fizeram importantes
estudos sobre a inativação do EDRF. Praticamente
ao mesmo tempo, Murad e Ignarro, que também foram
laureados com o Prêmio Nobel, verificaram que
vasodilatadores como a nitroglicerina e o próprio
NO produziam relaxamento do músculo liso por
ativar a síntese de GMP cíclico. Naquela
época, Furchgott fez uma série de experimentos
para comparar os efeitos do EDRF com os do NO. Por coincidência,
também em 1986, tanto Furchgott como Ignarro,
independentemente, propuseram, em um Simpósio,
que o EDRF e o NO eram a mesma substância. Os
resultados desse simpósio só foram publicados
em 1988. Nesse mesmo ano, Moncada e colaboradores verificaram
que a origem do NO era a l-arginina endógena,
por ação da enzima NO-sintase. A partir
daí o estudo do NO progrediu logaritmicamente
e a sensação é a de que, apesar
dos milhares de trabalhos já publicados, ainda
há muito a descobrir em relação
ao papel do NO no organismo. Quando soube que Furchgott
havia recebido o Prêmio Nobel, muitas idéias
me vieram à mente, as quais procuro resumir abaixo
para um eventual exercício de reflexão:
(a) Furchgott trabalhou com preparações
extremamente simples, de músculo liso isolado,
em um momento em que se valorizava cada vez mais a sofisticação
tecnológica, o que mostra que nem sempre é
a metodologia de fronteira que leva aos resultados mais
espetaculares; (b) iniciou sua pesquisa com o EDRF com
cerca de 60 anos de idade, quando muitos já pensam
em aposentar-se; (c) sempre comentava que era muito
lento para publicar, o que atribuo ao fato de ser bastante
perfeccionista. Isso me faz pensar na importância
de avaliar mais a qualidade do que a quantidade de publicações,
ao contrário de algumas tendências atuais;
d) sua descoberta foi muito facilitada, em minha opinião,
porque tinha uma sólida vivência em farmacologia
geral e experimental, o que reforça a importância
da pesquisa básica; (e) muitas vezes as grandes
descobertas estão ao nosso lado, sem que isso
seja percebido. Aron Jurkiewicz – Professor Titular
de Farmacologia da EPM/UNIFESP. |