Disciplina de Neurologia Experimental

Correspondência: Cícero Galli Coimbra - Médico Neurologista e Professor Livre-Docente
Departamento de Neurologia e Neurocirurgia - Universidade Federal de São Paulo

Em defesa da administração de doses elevadas de riboflavina associada à eliminação
dos fatores desencadeantes no tratamento da doença de Parkinson do tipo esporádico
Sofrimento emocional e consumo excessivo de carne vermelha
como desencadeantes da doença de Parkinson

Cicero Galli Coimbra e Virgínia Berlanga Campos Junqueira

I) Como o "princípio da parcimônia" ou "navalha de Occam" pode ser utilizada na compreensão da fisiopatologia da doença de Parkinson do tipo esporádico

É atribuída ao filósofo e teólogo britânico William of Ockham (1285-1349) a elaboração do "princípio da parcimônia" [Lo Re 3rd e Bellini, 2002], o qual encontra-se firmemente incorporado a todas as áreas do conhecimento científico atual, sendo especialmente empregado na investigação das causas de fenômenos naturais [Novak, 2004].  O princípio da parcimônia prevê que a explicação mais simples, capaz de abranger o maior número de observações ou achados relacionados a um determinado fenômeno, deve ser assumida como a correta, evitando-se a larga probabilidade de erro associada às explicações mais complexas ou múltiplas [Fastovsky e Weishampel, 1996]. A parcimônia constitui-se, por isso mesmo, em um método simples de estimativa estatística das causas do fenômeno em análise [Goloboff, 2003].

O hábito de exclusão ou eliminação das explicações mais complexas em favor das mais simples durante a investigação científica levou à freqüente utilização do termo "navalha de Occam" ("Occam's razor" - contendo a simplificação do nome "Ockham" de forma a contemplar a sua pronúncia medieval) em referência ao princípio da parcimônia. De acordo com Grünwald [2000], a navalha de Occam é utilizada para remover tudo o que é largamente improvável, e por isso mesmo desnecessário:

    "it is vain to do with more what can be done with fewer"
    William of Occam

Em português:

    "é improfícuo fazer-se com mais o que pode ser feito com menos"
    William of Occam

O princípio da parcimônia é utilizado no dia-a-dia de todas as especialidades médicas, sendo reconhecido como princípio fundamental firmemente estabelecido na busca do diagnóstico das causas dos sinais e sintomas dos pacientes que buscam tratamento para seus males [Drachman, 2000]. Aplicando-o, os médicos sistematicamente buscam identificar uma única causa que isoladamente explique a maior parte possível de toda a constelação de manifestações clínicas apresentada pelo paciente [Lo Re 3rd e Bellini, 2002].  O diagnóstico neurológico não foge a essa regra fundamental: ao contrário, justamente devido ao método estabelecido de iniciar o processo diagnóstico pela tentativa de localização topográfica de uma única lesão capaz de justificar todos os sinais [Rowland, 2000], o neurologista é provavelmente aquele que mais sistematicamente o aplica. Conforme Bradley et al [2000]:

    "The principle of parsimony, or Occam's razor, requires that we strive to hypothesize only one lesion."

Em português:

    "O princípio da parcimônia, ou navalha de Occam, requer que busquemos propor uma única lesão."

O mesmo ocorre durante a construção da lista do diagnóstico diferencial [Bradley et al, 2000]:

    "Again, the principle of parsimony should be applied when constructing the differential diagnostic list. Consider a patient with a 3-week history of a progressive spinal cord lesion who suddenly becomes aphasic. Perhaps he had a tumor compressing the spinal cord and has incidentally developed a small stroke, but parsimony would suggest a single disease, probably cancer with multiple metastases. Another example is a patient with progressive atrophy of the small muscles of the hands for 6 months before the appearance of a pseudobulpar palsy. He should have bilateral ulnar nerve lesions and recent bilateral strokes, but amyotrophic lateral sclerosis is more likely."

Em português:

    "Novamente, o princípio da parcimônia deve ser aplicado ao construir-se a lista de diagnóstico diferencial. Considere um paciente com uma história de lesão progressiva da medula espinhal que subitamente se torna afásico. Talvez ele tivesse um tumor comprimindo a medula espinhal e tenha incidentalmente apresentado um AVC, mas a parcimônia sugere uma doença única, provavelmente câncer com múltiplas metástases. Outro exemplo é um paciente com atrofia progressiva dos pequenos músculos das mãos ao longo de 6 meses antes do aparecimento de paralisia pseudobulbar. Ela poderia ter lesões bilaterais do nervo unar e AVC's bilaterais recentes, mas o diagnóstico de esclerose lateral amiotrófica é mais provável."

O papel fundamental da deficiência da vitamina B2 na fisiopatologia da doença de Parkinson evidencia-se também pela simples aplicação do princípio da parcimônia. Demonstrou-se aqui que quase todos, senão todos os distúrbios, não somente neuroquímicos, mas também sistêmicos, identificados na doença de Parkinson, além de diversos dados epidemiológicos, são explicáveis pela deficiência de vitamina B2, possivelmente secundária à expressão de uma enzima - a flavoquinase, com baixa afinidade pelo seu substrato - a riboflavina. Incluem-se todos os itens a seguir, pelo envolvimento, direto ou indireto, de enzimas dependentes das formas ativas da vitamina B2 (FMN e/ou FAD: ver as partes precedentes deste texto para referências):

    (I) A depleção da glutationa reduzida documentada como evento neuroquímico mais precoce na substância negra, putamen, globus pallidus, núcleo basal de Meynert, núcleo amigdalóide e córtex frontal desses pacientes, pois a enzima glutiationa redutase utiliza o FAD como co-fator;

    (II) A produção de 6(OH)DA nas células dopaminérgicas, secundária ao acúmulo de peróxido de hidrogênio, ocasionado pelo item anterior (I), e de ferro solúvel (forma ferrosa, Fe+2) - ocasionado pelo item seguinte (III), ambos (itens I e III) concorrendo para o favorecimento da reação de Fenton, com conseqüente produção de radicais hidroxila que se ligam às moléculas de DA;

    (III) As alterações do metabolismo do ferro, caracterizadas pelo aumento do ferro iônico livre no citosol, diminuição do ferro ligado à ferritina, devido à dependência das enzimas controladoras do armazenamento do ferro na ferritina pelas formas ativas da vitamina B2: a NADH-FMN oxidoredutase (dependente de FMN), e a xantina-FAD oxidoredutase (dependente de FAD);

    (IV) A peroxidação lipídica (causadora em última instância da morte neurona), pois o ferro na forma insolúvel (férrica, Fe+3) necessária para a catálise desse fenômeno acionado pelos radicais livres, é colocado em contato com as membranas lipídicas neuronais pelo aporte ao tecido nervoso de hemina (tanto endógena quanto produzida pela digestão, contendo o Fe+3 no seu interior) não destruída pela heme-oxigenase - limitada a ação desta última pela baixa atividade da flavoproteína redutase da família citocromo P-450 (dependente de FMN e de FAD);

    (V) A baixa atividade do Complexo I da cadeia de transporte de elétrons na mitocôndria (NADPH-COQ redutase, dependente de FMN), verificada no músculo, nas plaquetas e no tecido nervoso dos portadores;

    (VI) A baixa atividade do Complexo II (succinato desidrogenase, dependente de FAD) da cadeia de transporte de elétrons da mitocôndria, verificada no músculo desses pacientes;

    (VII) A baixa atividade da desidrogenase do piruvato (dependente de FAD) avaliada em fibroblastos dos portadores;

    (VIII) A baixa atividade da a-cetoglutarato desidrogenase (dependente de FAD) avaliada no tecido nervoso (núcleo estriado) dos portadores;

    (IX) As mutações do DNA mitocondrial verificadas nos portadores da doença, já que ambas as rotas alternativas para a síntese de desóxi-ribonucleotídeos (necessários para a contínua reparação do mtDNA) requerem o concurso do FAD, seja indireta (pela dependência de glutationa reduzida) ou diretamente;

    (X) A reação microglial (macrofágica) presente na substância negra dos pacientes afetados, devido à dependência indireta da atividade da a1-hidroxilase (expressa pela micróglia ativada - como membro da família citocromo P-450, sua atividade também requer o concurso da redutase da família citocromo P-450) em relação ao FMN e ao FAD; em conseqüência, a ativação microglial não é sustada pela produção autócrina de 1a,25(OH)2D3, sustentando-se o processo inflamatório produtor de radicais livres, e por isso mesmo capaz de potencializar os efeitos nocivos do ferro iônico no tecido nervoso através da reação de Fenton;

    (XI) A identificação (por diversos autores) do excesso de gordura animal e de ferro como fatores de risco na dieta dos portadores; a participação associada desses elementos na dieta aponta na verdade para a presença elevadas quantidades de carne vermelha - fonte de hemina, interagindo com a limitada capacidade de absorção da riboflavina (consistente com o conceito corrente de que desencadeantes ambientais ou endógenos devem interagir com uma perdisposição familiar na determinação da doença);

    (XII) A reduzida concentração de neuromelanina nos neurônios remanescentes ao longo do processo neurodegenerativo parkinsoniano, em decorrência da provável participação da riboflavina e de seus metabólitos ativos na síntese e na sustentação funcional/estrutural da neuromelanina;

    (XIII) O papel do estresse emocional como desencadeador da doença de Parkinson, pois a depleção da glutationa reduzida, secundária à deficiência da vitamina B2, torna as células produtoras de dopamina vulneráveis ao estresse oxidativo provocado pela excessiva demanda funcional sobre esses neurônios durante o sofrimento emocional;

    (XIV) A reduzida eliminação de xenobióticos.

No que se refere ao último item, o reduzido catabolismo de xenobióticos pelos portadores da doença de Parkinson representa um eloqüente exemplo da diversidade de fenômenos sistêmicos associados à essa doença que pode ser explicado pela deficiência de vitamina B2, consorciando-se aos onze itens anteriores na aplicação do princípio da parcimônia para indicar a participação da deficiência desse micronutriente como fator etiológico fundamental. Presentemente não há nenhum outro modelo fisiopatológico alternativo à deficiência de vitamina B2 que mostre-se capaz de englobar sequer um pequeno subgrupo dos 12 itens anteriormente enunciados.

Xenobióticos que, para sua metabolização, devem ser hidroxilados por elementos da família de enzimas citocromo P-450, são eliminados mais lentamente em portadores da doença de Parkinson do tipo esporádico do que em indivíduos normais. Tal é o caso da fenitoína, cuja principal via de eliminação dá-se através da hidroxilação pelas enzimas P450, que a transformam no seu metabólito fenólico - a 5-(p-hidróxifenil),5-fenilhidantoina (HPPH) - posteriormente oxidada a catecol, o qual sofre metilação pela ação da COMT [Cuttle et al, 2000].  A capacidade de hidroxilação da fenitoína encontra-se freqüentemente reduzida em pacientes portadores da forma esporádica [Ferrari et al, 1990], mas não da forma familiar [Peeters et al, 1994] da doença de Parkinson. Resultados similares foram evidenciados com outros xenobióticos, tais como a debrisoquina e o acetaminofem [Steiger et al, 1992; Factor et al, 1989].

Esses relatos levaram à hipótese de que polimorfismos de elementos da família de enzimas P-450 poderiam levar à reduzida capacidade de eliminação de neurotoxinas ambientais ou alimentares, dando origem à doença [Shahi et al, 1990]. A descoberta da neurotoxina indutora de parkinsonismo - o MPTP (1-metill-4-fenil-1,2,3,6-tetrahidropiridina) propiciou grande impulso tanto às investigações relacionadas à procura de neurotoxinas ambientais similares ao MPTP como de polimorfismos das enzimas P-450 [Shahi et al, 1990].  Evidentemente, essa é uma clara aplicação do princípio epidemilógico geral de que a doença é o resultado da interação entre uma predisposição genética e um desencadeante ambiental ou comportamental.

A participação da deficiência da vitamina B2 na fisiopatologia da doença de Parkinson do tipo esporádico propicia, também, a compreensão de como a eliminação de xenobióticos pelas enzimas citocromo P-450 encontra-se reduzida nos portadores, sem que, no entanto, qualquer polimorfismo das enzimas diretamente envolvidas tenha sido consistentemente encontrado em associação com a doença [Kurth e Kurth, 1990; Plante-Bordeneuve et al, 1994; Riedl et al, 1998] (Figura 10).  Esse modelo prevê que deva ser encontrada nos portadores da DP uma alteração da proporção normal dos nucleotídeos da riboflavina atuando como grupamentos prostéticos da redutase da família citocromo P-450, tal como ocorre na deficiência induzida experimentalmente através da privação dietética de riboflavina [Hara e Taniguchi, 1982; Hara e Taniguchi, 1985], com conseqüente limitação da sua atividade redutora. Conforme se demonstra na Figura 4, a neurotoxina capaz de atuar como desencadeante poderia ser a hemina [Coimbra e Junqueira, 2003].

Figura 10

Figura 10: Porque a deficiência da riboflavina pode limitar a eliminação de xenobióticos pelas hidroxilases da família citocromo P-450. Na deficiência da vitamina B2 ocorre um desequlíbrio da composição normal dos cofatores da enzima redutase da família citocromo P-450 (as formas ativas da vitamina B2 - FAD e FMN) [Hara e Taniguchi, 1982; Hara e Taniguchi, 1985], com conseqüente depleção das formas reduzidas dos elementos dessa família de enzimas e limitação da eliminação do xenobiótico (substrato, ou RH) correspondente. Modificado da Figura 1, quadro 21-1, página 783 de Nelson e Cox [2000].

Evidentemente, alguns dentre aqueles que se dedicam à investigação das causas da doença de Parkinson do tipo esporádico podem optar, por exemplo, pela busca de mutações nas cadeias peptídicas que compõem o Complexo I da cadeia de transporte de elétrons na mitocôndria, na tentativa de explicarem porque a atividade desse complexo enzimático encontra-se deprimida em diversos tecidos dos portadores. No entanto, o princípio da parcimônia antecipa que, tal como tem ocorrido [Orth e Shapira, 2002], essas tentativas vão seguir falhando, pois as demais características fisiopatológicas da doença não podem explicadas por um polimorfismo de qualquer dessas cadeias. É provável, no entanto, que, se algum pesquisador buscar avaliar o conteúdo de FMN do Complexo I, deverá encontrar níveis baixos nos tecidos dos portadores em relação a indivíduos controle.

Estimulados pelo conhecimento de uma catabolização lenta de diversos fármacos nos portadores da doença, outros pesquisadores podem buscar mutações da enzima pertencente à grande família citocromo P-450 que é especificamente responsável pela para-hidroxilação da fenitoína. Por outro lado, outros podem achar ainda mais atrativo o seqüenciamento daquele elemento enzimático, também pertencente à mesma família, e responsável pela hidroxilação do acetaminofem, ou alternativamente, podem preferir o seqüenciamento de outra enzima P-450 - especificamente aquela que hidroxila a debrisoquina. Novamente, pela mesma razão, tal como tem sistematicamente ocorrido [Kurth e Kurth, 1990; Plante-Bordeneuve et al, 1994; Riedl et al, 1998], a navalha de Occam deve seguir amputando-lhes as espectativas, pois estão a buscar múltiplas explicações para compor diferentes aspectos de um mesmo fenômeno. É provável, no entanto, que, se algum pesquisador buscar avaliar nos tecidos de portadores a composição dos grupamentos prostéticos (FMN e FAD) da redutase da família citocromo P-450, deverá encontrar um desequilíbrio entre eles, similar àquele descrito na deficiência experimental de riboflavina [Hara e Taniguchi, 1982; Hara e Taniguchi, 1985] associado a uma redução da atividade dessa enzima (ainda não relatada).

A monoamino oxidase (MAO) é uma enzima dependente de FAD e que converte aminas biogênicas em seus aldeídos correspondentes [Nelson e Cox, 2000]. Como seria de esperar-se, a eliminação de xenobióticos pela MAO-B encontra-se também reduzida nos portadores da DP do tipo esporádico, devido a uma alteração da especificidade da enzima pelo seu substrato [Steventon et al, 2001; Williams et al, 1991], constituindo-se este em mais um exemplo da diversidade de fenômenos fisiopatológicos associados à DP que pode ser explicado através da deficiência de vitamina B2 com conseqüente redução da disponibilidade das suas formas ativas.

O emprego do princípio da parcimônia pode, portanto, evitar largo dispêndio de recursos na pesquisa relacionada à doença de Parkinson do tipo esporádico.

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