Disciplina de Neurologia Experimental

Correspondência: Cícero Galli Coimbra - Médico Neurologista e Professor Livre-Docente
Departamento de Neurologia e Neurocirurgia - Universidade Federal de São Paulo

Em defesa da administração de doses elevadas de riboflavina associada à eliminação
dos fatores desencadeantes no tratamento da doença de Parkinson do tipo esporádico
Sofrimento emocional e consumo excessivo de carne vermelha
como desencadeantes da doença de Parkinson

Cicero Galli Coimbra e Virgínia Berlanga Campos Junqueira

C) Resposta quanto à necessidade de um estudo duplo-cego randomizado para a demonstração de que a administração de riboflavina em altas doses e a eliminação da carne vermelha da dieta têm efeito benéfico, contrário à progressão natural da doença de Parkinson do tipo esporádico

A necessidade de um estudo duplo-cego randomizado para tal fim deve ser necessariamente analisada à luz do fato de que o estudo questionado [Coimbra e Junqueira, 2003] não teve como objetivo a comprovação do efeito benéfico de um xenobiótico (substância estranha ao organismo) mas sim a verificação de qual o impacto que teriam sobre a evolução da doença de Parkinson do tipo esporádico (I) a correção de uma alteração metabólica (a deficiência de riboflavina provavelmente secundária a uma dificuldade de absorção desse micronutriente) comprovada na totalidade de uma amostra de 31 indivíduos portadores (conforme se enfatiza no segmento "A" deste texto) e (II) a eliminação de um fator diferenciador ambiental/nutricional (a retirada da carne vermelha da dieta - consumida em média em quantidade muito superior ao observado em um grupo controle não portador da doença) dos mesmos portadores.

A identificação de um efeito benéfico dessas duas intervenções associadas, propiciando melhoras da capacidade motora (I) a um percentual de indivíduos e (II) durante um período de tempo incompatíveis com um efeito placebo (como se verá adiante) coloca preliminarmente a doença de Parkinson do tipo esporádico na categoria de doença neurológica cuja evolução e progressão é dependente da sustentação da deficiência de um micronutriente específico - a riboflavina. Da mesma forma, as seqüelas resultantes da perda neural deverão acumular-se proporcionalmente ao tempo em que se sustenta a deficiência.

Comparativamente, é útil analisar o caso da Síndrome de Wernicke-Korsakoff.  Nesse caso, tal como ocorre com a doença de Parkinson do tipo esporádico, a deficiência de um outro micronutriente (a tiamina) leva ao desenvolvimento de sintomas e sinais neurológicos associados à lesão do tecido nervoso, e quanto mais se posterga a correção da deficiência de tiamina, maiores são as seqüelas permanentes resultantes e maior é a mortalidade.

Tal como ocorre com a doença de Parkinson do tipo esporádico (aparentemente dependente da expressão de uma forma enzimática da flavoquinase relativamente ineficiente em promover a absorção de riboflavina - Figura 2), a Síndrome de Wernicke-Korsakoff parece afetar indivíduos portadores de uma deficiência enzimática (que afeta a transcetolase) - o que confere ao seu tecido nervoso uma vulnerabilidade seletiva não observada nos indivíduos não portadores dessa deficiência, os quais mostram-se capazes de suportar níveis de deficiência tiamínica igualmente ou mais severamente reduzidos, sem desenvolverem a mesma síndrome neurológica [Calingasan et al, 1996]. O Km da trancetolase para o pirofosfato de tiamina (TPP) observado nos fibroblastos de portadores da síndrome é mais de 10 vezes superior àquele encontrado nos fibroblastos obtidos de indivíduos normais [Blass e Gibson, 1977].

Figura 2

Figura 2: Interconversão das formas ativas da vitamina B2. A absorção da vitamina B2 ocorre pela ação da flavoquinase (FK) da célula intestinal sobre a riboflavina, que trasforma esta última em FMN - o qual é, a seguir transformado em FAD pela FAD sintase.  Assim, a normalização dos níveis de FAD (evidenciada tanto pela dosagem direta do FAD no plasma quanto pela normalização do EGR-AC) através de doses elevadas de riboflavina (mas não pelo conteúdo normal de riboflavina na dieta) indica que o passo metabólico limitante é aquele mediado pela FK, e não o mediado pela FAD sintase. A administração de doses elevadas de riboflavina representa um aumento da concentração do substrato da FK, indicando que o defeito enzimático responsável corresponde a uma baixa afinidade da FK pelo seu substrato [Anderson et al, 1994].

Assim, tanto no caso da doença de Parkinson do tipo esporádico como no caso da Síndrome de Wernicke-Korsakoff, uma alteração enzimática predisponente (afetanto possivelmente a flavoquinase e a transcetolase respectivamente) como um fator ambiental/nutricional facilitador ou desencadeante (consumo excessivo de carne vermelha e alcoolismo, respectivamente) parecem estar freqüentemente envolvidos, apesar da possibilidade que outros fatores facilitadores ou desencadeantes alternativos ou coexistentes possam ocorrer em ambos os casos.

Apesar de não existirem estudos duplo-cegos randomizados demonstrando que a progressão da Síndrome de Wernicke-Korsakoff possa ser detida e parcialmente revertida pela administração de tiamina, não existem questionamentos quanto à propriedade dessa conduta terapêutica em nenhum centro neurológico mundial.  Ao contrário, encontra-se de fato claramente estabelecido que a administração de tiamina minimiza as seqüelas neurológicas e reduz a mortalidade.  Evidentemente, qualquer proposta de um estudo controlado encontraria um obstáculo ético intransponível: os pacientes do grupo tratado com placebo evidentemente iriam desenvolver seqüelas graves permanentes e muitos iriam provavelmente evoluir para o óbito durante um estudo "cientificamente controlado" dessa natureza.

Guardadas as proporções relativas ao fato de que a Síndrome de Wernicke-Korsakoff tem evolução mais rápida (usualmente horas ou dias) do que a doença de Parkinson do tipo esporádico (meses ou anos), a situação fundamental é a mesma: a existência de um distúrbio metabólico evidente e corrigível, capaz de explicar os eventos fisiopatológicos conhecidos, e cuja correção pode deter a progressão da doença (interrompendo a continuidade da morte neuronal crônica, recuperando células neuronais já afetadas pelo processo neurodegenerativo - mas que não atingiram ainda o ponto de irreversibilidade), promover a recuperação total em casos de início recente, ou ao menos parcial das deficiências neurológicas nos casos mais avançados (minimizando seqüelas permanentes) e impedir a morte.

Evidentemente, para alguns pacientes constituintes do grupo placebo em estágio evolutivo mediano, o período (meses ou anos ao longo do quais a correção do distúrbio metabólico é postergada) necessário para completar-se o estudo duplo-cego randomizado defendido por Ferraz, Quagliato e outros, pode implicar na perda da oportunidade de melhorar-se ou normalizar-se o equilíbrio, evitando-se uma seqüência de eventos muito comum nesses pacientes (devido à co-morbidade entre a doença de Parkinson e a osteoporose): queda da própria altura com fratura do colo do fêmur complicada por trombose venosa profunda e, finalmente, a morte por tromboembolismo pulmonar.

Para outros pacientes em estágio mais precoce, com doença de Parkinson do tipo esporádico iniciada há meses, pode representar a perda da oportunidade de retornar à fase assintomática em que, apesar de manter-se uma celularidade dopaminérgica inferior ao normal na substância negra, o indivíduo mantém-se assintomático, sem a necessidade do uso de medicações antiparkinsonianas dispendiosas e dotadas de efeitos colaterais, sustentando ademais uma vida normal e economicamente produtiva.

Para outros pacientes em estágio mais avançado, pode implicar na perda da oportunidade de voltar a tornar-se autônomo para o cuidado pessoal, com conseqüente recuperação da auto-estima, liberando familiares cuidadores para as suas atividades profissionais e domésticas rotineiras, com elevado benefício para a qualidade de vida do paciente e da família.

Para os pacientes em estágio ainda mais avançado, esse período de posterga pode implicar na perda da oportunidade de melhorar (I) a mobilidade da caixa torácica, (I) a eliminação de secreções respiratórias, e (III) a capacidade de mudar o próprio decúbito periodicamente no leito, o que evitaria a ocorrência de uma broncopneumonia freqüentemente letal.

Conclui-se que a utilização de grupos controle, seja em estudos randomizados, duplo-cegos ou não, para comparação estatística com os indivíduos tratados com altas doses de riboflavina (destinadas, não a promover uma hipervitaminose B2, mas sim à normalização dos níveis plasmáticos de FAD e a normalização do EGR-AC através da compensação de uma provável baixa afinidade da flavoquinase pelo seu substrato - a riboflavina) é eticamente inviável, pois não se trata de testar o valor terapêutico de um xenobiótico potencialmente dotado de efeitos colaterais, mas sim buscar o estado de homeostasia interna, através da correção de um distúrbio metabólico consistentemente documentado em uma amostra de 31 portadores de doença de Parkinson do tipo esporádico [Coimbra e Junqueira, 2003], potencialmente sustentador de quase todo (se não todo, se considerado em associação com desencadeantes ambientais corretamente identificados) o mosaico de fenômenos fisiopatológicos, tanto neuroquímicos como sistêmicos, mediadores do processo neurodegenerativo que afeta as células dopaminérgicas.

Face ao exposto, é de fato surpreendente que Ferraz, Quagliato e outros não diferenciem a correção da hipovitaminose B2 de um efeito medicamentoso e que, ao mesmo tempo, sustentem que "não haveria qualquer problema ético" em negligenciar essa correção em favor da sustentação de um tratamento "tradicional" puramente voltado para o alívio paliativo dos sintomas, enquanto o processo neurodegenerativo segue em progressão:

    "Isso é conhecido em ciência como "estudo duplo-cego, controlado com placebo" e é altamente recomendado na avaliação do efeito de medicamentos (vitamina B2) ou outro tipo de intervenção (abstinência da carne vermelha). Não haveria qualquer problema ético para o uso de cápsulas de placebo já que os pacientes nos dois grupos (B2 ou placebo) continuariam recebendo o tratamento tradicional para a doença de Parkinson."

Evidentemente, a proposta de utilização de grupos controle nesse caso somente seria eticamente defensável se Ferraz, Quagliato e outros houvessem logrado preliminarmente demonstrar que os dados relativos à deficiência de vitamina B2 (FAD) nos portadores de doença de Parkinson do tipo esporádico, apresentados por Coimbra e Junqueira [2003], não eram válidos: assim o efeito relatado poderia ser encarado, não como o resultado da correção de uma deficiência vitamínica, mas sim como equivalente ao efeito de um xenobiótico.  No entanto, verifica-se que a tentativa de Ferraz, Quagliato e outros de (associadamente à proposta de utilização de grupos controle) invalidarem os dados referentes à deficiência desse micronutriente nesses portadores foi fundamentada principalmente na omissão (SITUAÇÃO "A") dos dados referentes ao EGR-AC e de suas implicações.

Secundariamente, essa tentativa foi também fundamentadada nas falsas asserções de que:

    a) o grupo controle (grupo denominado DwoStr - utilizado na avaliação comparativa dos testes laboratoriais) seria composto por um número de pacientes insuficiente para a validação da análise estatística (SITUAÇÃO "B");

    b) a etiologia potencialmente diversa da demência dos pacientes do grupo DwoStr invalidaria o resultado da comparação estatística dos resultados laboratoriais referentes ao estado da vitamina B2 (SITUAÇÃO "B");

    c) na proposição elucubrativa não fundamentada sequer em dados de literatura (SITUAÇÃO "B") de que os parkinsonianos poderiam ter níveis normais de vitamina B2, ao passo que os portadores de demência possuiriam níveis desse micronutriente mais elevados em relação à população normal (!):

    "Se olharmos por outro ângulo, poderíamos até concluir o oposto, que os parkinsonianos teriam níveis normais e esperados para a idade e que os dementes teriam valores mais elevados que o restante da população."

O número de pacientes utilizado em ambos os grupos foi suficiente para um poder estatístico ("statistical power") superior a um mínimo de 80% e para um nível de significância mínimo de 5% (p < 0.05) [Colaboração de Terence O'Reilly, estatistico da Novartis, Suiça, utilizando o programa SigmaStatÔ - citado nos agradecimentos do artigo original - Coimbra e Junqueira, 2003].

A utilização de um grupo heterogêneo de indivíduos (portadores de diversas desordens clínicas) como controle de uma variável biológica é uso corrente nas publicações científicas da área médica há muitas décadas. Ferraz, Quagliato e outros podem facilmente familiarizar-se com essa metodologia através da análise da metodologia empregada em estudos clássicos. Na realidade, a evidenciação de que a alteração da variável biológica considerada diferencia o grupo experimental (portador da doença em estudo) de um grupo controle heterogêneo (composto por portadores de doenças diversas e não apenas de uma única outra doença) somente valoriza a importância fisiopatológica dos resultados obtidos, pois enfatiza a diferença significante encontrada como específica daquela doença em relação às demais genericamente consideradas, ao contrário de particularmente diferenciá-la de uma outra doença específica.  Ademais, mesmo que os critérios correntes para a caracterização da "demência do tipo Alzheimer" fossem adequadamente satisfeitos, ainda assim teríamos potencialmente um grupo heterogêneo de doenças afetando os integrantes do grupo controle, pois o diagnóstico dessa doença somente pode ser declarado com segurança mediante o resultado da biópsia cerebral.

Apesar de reconhecer-se a importância de considerar outras hipóteses que alternativamente expliquem resultados obtidos com qualquer experimento, seja clínico ou experimental, há necessidade de um mínimo de plausibilidade ao se argüir em favor de qualquer possibilidade hipotética, sob pena da discussão pretensamente científica ser levada para um rumo estéril, onde nenhuma conclusão sequer preliminar pode ser considerada.  A possibilidade de que os portadores de demência tenham um ganho funcional (melhor capacidade de absorver a riboflavina) em relação à população geral é evidentemente improvável por sua própria natureza, além de não encontrar sustentação em qualquer achado prévio na literatura (SITUAÇÃO "B").  Ademais, essa possibilidade é claramente excluída pelos achados referentes ao EGR-AC (omitidos na crítica de Ferraz, Quagliato e outros - SITUAÇÃO "A"), que demonstraram uma demanda endógena pelo FAD apenas normalmente preenchida em 7 dentre 10 pacientes portadores de demência (DwoStr) e em nenhum dos 31 portadores de doença de Parkinson do tipo esporádico consecutivamente avaliados.

Pode o efeito placebo ser avaliado com razoável segurança sem a utilização de um grupo controle que afinal se revela anti-ético?

Apesar de que a utilização de indivíduos não tratados com riboflavina como controles não seja eticamente aceitável, a avaliação da possibilidade de um efeito placebo pode ser feita através da comparação do efeito potencialmente benéfico descrito com o efeito reconhecidamente placebo verificado especificamente na doença de Parkinson do tipo esporádico.

Para tanto, o estudo de Goetz et al [2000] mostra-se altamente pertinente e útil. Através desse estudo, que incluiu 105 pacientes (64 homens e 41 mulheres) portadores de doença de Parkinson tratados com placebo ao longo de 6 meses (com avaliações clínicas efetuadas com 1, 3 e 6 meses), os autores verificaram o relato de melhoras motoras em apenas 16% dos casos, o que contrasta largamente com os resultados do estudo alvo [Coimbra e Junqueira, 2003], onde os efeitos benéficos foram constatados em 100% dos pacientes tratados, sustentando-se o benefício terapêutico em todos eles ao longo de 6 meses, desde que mantidas a dieta e a correção dos valores de EGR-AC nos eritrócitos e de FAD no plasma.  Atualmente constata-se que o mesmo benefício se sustenta já por 2 anos em todos os 19 pacientes inicialmente tratados, demonstrando-se, também por essa razão, a fragilidade da argumentação em favor de um efeito placebo na origem dos resultados alcançados.

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