Pergunto coisas ao buriti; e o que ele responde é a coragem
minha. Buriti quer todo o azul, e não se aparta de sua
água - carece de espelho. Mestre não é quem
sempre ensina, mas quem de repente aprende.
João Guimarães Rosa / Grande Sertão: Veredas
Ninguém
escapa da educação. Em casa, na rua, na igreja ou
na escola, de um modo ou de muitos todos nós envolvemos
pedaços da vida com ela: para aprender, para ensinar, para
aprender-e-ensinar. Para saber, para fazer, para ser ou para conviver,
todos os dias misturamos a vida com a educação.
Com uma ou com várias: educação ? Educações.
E já que pelo menos por isso sempre achamos que temos alguma
coisa a dizer sobre a educação que nos invade a
vida, por que não começar a pensar sobre ela com
o que uns índios uma vez escreveram ?
Há muitos anos nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland
assinaram um tratado de paz com os índios das Seis Nações.
Ora, como as promessas e os símbolos da educação
sempre foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo
depois os seus governantes mandaram cartas aos índios para
que enviassem alguns de seus jovens às escolas dos brancos.
Os chefes responderam agradecendo e recusando. A carta acabou
conhecida porque alguns anos mais tarde Benjamin Franklin adotou
o costume de divulgá-la aqui e ali. Eis o trecho que nos
interessa:
"... Nós estamos convencidos, portanto, que os
senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o
coração.
Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes
nações têm concepções diferentes
das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão
ofendidos ao saber que a vossa idéia de educação
não é a mesma que a nossa.... Muitos dos nossos
bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam
toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós,
eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes
de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar
o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa
língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis.
Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como
conselheiros.Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta
e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a
nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virgínia
que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo
o que sabemos e faremos, deles, homens."
De
tudo o que se discute hoje sobre a educação, algumas
das questões entre as mais importantes estão escritas
nesta carta de índios. Não há uma forma única
nem um único modelo de educação; a escola
não é o único lugar onde ela acontece e talvez
nem seja o melhor; o ensino escolar não é a sua
única prática e o professor profissional não
é o seu único praticante.
Em mundos diversos a educação existe diferente:
em pequenas sociedades tribais de povos caçadores, agricultores
ou pastores nômades; em sociedades camponesas, em países
desenvolvidos e industrializados; em mundos sociais sem classes,
de classes, com este ou aquele tipo de conflito entre as suas
classes; em tipos de sociedades e culturas sem Estado, com um
Estado em formação ou com ele consolidado entre
e sobre as pessoas.
Existe a educação de cada categoria de sujeitos
de um povo; ela existe em cada povo, ou entre povos que se encontram.
Existe entre povos que submetem e dominam outros povos, usando
a educação como um recurso a mais de sua dominância.
Da família à comunidade, a educação
existe difusa em todos os mundos sociais, entre as incontáveis
práticas dos mistérios do aprender; primeiro sem
classes de alunos, sem livros e sem professores especialistas;
mais adiante com escolas, salas, professores e métodos
pedagógicos.
A educação pode existir livre e, entre todos, pode
ser uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum, como
saber, como idéia, como crença, aquilo que é
comunitário como bem, como trabalho ou como vida. Ela pode
existir imposta por um sistema centralizado de poder, que usa
o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam
a desigualdade entre os homens, na divisão dos bens, do
trabalho, dos direitos e dos símbolos.
A educação é, como outras, uma fração
do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam, entre
tantas outras invenções de sua cultura, em sua sociedade.
Formas de educação que produzem e praticam, para
que elas reproduzam, entre todos os que ensinam-e-aprendem, o
saber que atravessa as palavras da tribo, os códigos sociais
de conduta, as regras do trabalho, os segredos da arte ou da religião,
do artesanato ou da tecnologia que qualquer povo precisa para
reinventar, todos os dias, a vida do grupo e a de cada um de seus
sujeitos, através de trocas sem fim com a natureza e entre
os homens, trocas que existem dentro do mundo social onde a própria
educação habita, e desde onde ajuda a explicar -
às vezes a ocultar, às vezes a inculcar - de geração
em geração, a necessidade da existência de
sua ordem.
Por isso mesmo - e os índios sabiam - a educação
do colonizador, que contém o saber de seu modo de vida
e ajuda a confirmar a aparente legalidade de seus atos de domínio,
na verdade não serve para ser a educação
do colonizado. Não serve e existe contra uma educação
que ele, não obstante dominado, também possui como
um dos seus recursos, em seu mundo, dentro de sua cultura.
Assim, quando são necessários guerreiros ou burocratas,
a educação é um dos meios de que os homens
lançam mão para criar guerreiros ou burocratas.
Ela ajuda a pensar tipos de homens. Mais do que isso, ela ajuda
a criá-los, através de passar de uns para os outros
o saber que os constitui e legitima. Mais ainda, a educação
participa do processo de produção de crenças
e idéias, de qualificações e especialidades
que envolvem as trocas de símbolos, bens e poderes que,
em conjunto, constróem tipos de sociedades. E esta é
a sua força.
No entanto, pensando às vezes que age por si próprio,
livre e em nome de todos, o educador imagina que serve ao saber
e a quem ensina mas, na verdade, ele pode estar servindo a quem
o constituiu professor, a fim de usá-lo, e ao seu trabalho,
para os usos escusos que ocultam também na educação
- nas suas agências, suas práticas e nas idéias
que ela professa - interesses políticos impostos sobre
ela e, através de seu exercício, à sociedade
que habita. E esta é a sua fraqueza.
Aqui e ali será preciso voltar a estas idéias, e
elas podem ser como que um roteiro daqui para a frente. A Educação
existe no imaginário das pessoas e na ideologia dos grupos
sociais e, ali, sempre se espera, de dentro, ou sempre se diz
para fora, que a sua missão e transformar sujeitos e mundos
em alguma coisa melhor, de acordo com as imagens que se tem de
uns e outros: "... e deles faremos homens". Mas, na
prática, a mesma educação que ensina pode
deseducar, e pode correr o risco de fazer o contrário do
que pensa que faz, ou do que inventa que pode fazer: "...
eles eram, portanto, totalmente inúteis"